sábado, 30 de abril de 2016

O último dia do trabalhador


Programação do ato em comemoração ao dia
do trabalhador de 2016 em Goiânia.
Hoje começam as comemorações unificadas da Central Única dos Trabalhadores (CUT) e da Central dos Trabalhadores e Trabalhadoras do Brasil (CTB) pelo dia do trabalhador. Durante todo o dia 30 de abril e 1° de maio ocorrerão atividades na Praça do Trabalhador, em Goiânia, em homenagem àqueles que a Constituição Federal de 1988 reconhece como a parcela mais frágil da sociedade brasileira. Foi neste texto constitucional que os trabalhadores brasileiros ganharam direitos até então inéditos como a jornada de trabalho de oito horas diárias, o décimo-terceiro salário, o aviso prévio, a licença-maternidade e paternidade e a mobilização grevista. Para os que ingressaram no mercado de trabalho após a vigência da Constituição de 1988 parece que esses direitos sempre existiram e que jamais poderão ser retirados deles. 

Atualmente, no entanto, vimos uma enorme pressão do setor empresarial — sob a batuta da FIESP — para derrubar o governo constitucional do Brasil e, com ele, diversas medidas de proteção ao trabalhador. Na sexta-feira, o presidente do Tribunal Superior do Trabalho, Ives Gandra Filho, anunciou que se não houver realocação de verbas para o órgão até agosto, ele deve parar por completo. Se tudo der certo para os golpistas, em agosto Michel Temer já será o presidente do Brasil, escolhido não pelo povo, mas pelos representantes dos empresários no Congresso Nacional que terão derrubado Dilma Rousseff. Entre as medidas defendidas pelo futuro presidente que impactarão diretamente na qualidade de vida dos trabalhadores estão o fim do reajuste automático do salário mínimo com base na taxa de inflação e a prevalência de acordos coletivos sobre a legislação trabalhista.

Temer deve aproveitar que seu correligionário Eduardo Cunha atualmente possui controle sobre cerca de 2/3 dos deputados federais e apresentar seu "pacote de maldades" ao Congresso já nas primeiras semanas após o afastamento de Dilma. Assusta saber que, com esse número de deputados, a dupla Temer—Cunha consegue até mesmo modificar a Constituição, retirando dos trabalhadores direitos consolidados há quase trinta anos. Os brasileiros não devem aceitar o retrocesso calado. Segundo Eduardo Fagnani, que define a conspiração política atual como "impeachment do processo civilizatório", o mais provável é "o acirramento da luta de classes que está nas ruas", sendo que Temer só poderá conseguir governabilidade se "depender de um Estado policial ainda mais severo que o utilizado em 1964". Justo quando a questão trabalhista era uma questão de polícia.

Monumento ao Trabalhador nos anos 60.
Foi também durante a ditadura anti-proletária inaugurada em 1964 que o Monumento ao Trabalhador, de autoria do artista plástico Clóvis Graciano, foi destruído. Construído e inaugurado em 1959 após demanda de sindicalistas ao governador José Feliciano e ao prefeito Jaime Câmara, o monumento tornou-se tão importante para a caracterização de Goiânia que levou à alteração do nome da praça que o acolheu de Praça Americano do Brasil para Praça do Trabalhador. Palco das comemorações de 1° de maio e de assembleias grevistas, logo se tornou um alvo visado pela direita. Numa madrugada de abril de 1969, membros do grupo terrorista Comando de Caça aos Comunistas (CCC) derramaram piche quente sobre os painéis do monumento. O então prefeito Iris Rezende, que seria ele próprio cassado pela ditadura, não toma providências para limpar e recuperar o monumento.

A perseguição aos trabalhadores brasileiros tem tudo para voltar. Dia 1° deve ser o último dia do trabalhador sob as luzes libertárias da democracia. É meu dever participar das comemorações cívicas em homenagem a essa figura tão perseguida e execrada que é o trabalhador brasileiro. Não sou trabalhador. Pelo contrário, sou um pequeno burguês. Entretanto, venho de uma família de quem trabalhou muito e se hoje posso me dar ao luxo de não exercer nenhuma profissão formal é porque meu pai e meu avô trabalharam muito. Nos últimos anos com o amparo do Estado, mas a maioria das vezes a despeito dele. Tendo consciência de onde vim, de qual classe social me pariu, não posso me omitir diante do estupro da democracia que certamente levará ao estupro de direitos sociais e trabalhistas. Os bons tempos voltaram e eles serão de chumbo, em especial para os trabalhadores.

Monumento aos trabalhadores que morreram
lutando pela jornada de oito horas. Até isso
Temer poderá revogar se quiser.
Não posso coadunar com quem deseja que os trabalhadores brasileiros sejam condenados a um salário de miséria e à carestia. Já escolhi meu lado nessa batalha e ele não visa o que é melhor apenas para mim. Desejo o mesmo luxo que eu desfruto — que não é enorme — para todos. Quero que o povo brasileiro seja feliz. E a felicidade, que pode até não estar no PT, com certeza não está no plano de governo de Michel Temer. Por isso, participo desse último suspiro de luta antes da materialização do "golpe frio". No assalto ao poder de Temer—Cunha até mesmo a jornada diária de oito horas de trabalho está comprometida. E foi justamente a demanda pela jornada de oito horas que levou ao massacre dos trabalhadores pela polícia de Chicago em 1° de maio de 1886, origem das comemorações do dia do trabalhador. Como disse Fagnani, o que está sendo cassado não é apenas o mandato de Dilma, é o próprio processo civilizatório. E não sou capaz de aplaudir isso.

quarta-feira, 27 de abril de 2016

Quem cria corvos...

Por que em 2003 Bolsonaro não chocava a Rede Globo?
Há um provérbio espanhol que deveria estar em voga no Brasil atual: cría cuervos y te sacarán los ojos ("cria corvos e te arrancarão os olhos"). É particularmente útil porque, na sua sanha antipetista, a direita moderada que era o PSDB, alinhou-se aos elementos mais delirantes da direita nacional. Teóricos da conspiração que acusam a Pepsi de fabricar seus refrigerantes a partir de fetos abortados e gente que acusa o ex-presidente Lula de tanta coisa que quando apresentam uma denúncia consistente contra ele eu simplesmente não consigo acreditar nela. No meio de tantos lunáticos, um extremista chama a atenção pelo tamanho de seu apelo junto à classe média que foi ao paraíso sob o lulismo e agora se volta contra o PT devido à crise econômica. Trata-se do deputado federal Jair Bolsonaro (PSC-RJ), que tem, entre as personalidades políticas brasileiras, a terceira página mais curtida no Facebook.

Apoiador de Lula em 2002, quando era do PTB, Bolsonaro logo terminou sua lua-de-mel com o PT e, já no ano seguinte, agrediu verbalmente a colega Maria do Rosário (PT-RS) enquanto esta dava uma entrevista para a equipe de jornalismo da RedeTV no corredor da Câmara dos Deputados. Foi a primeira vez que ele disse a outro ser humano "não estupraria você porque você não merece". Na época não existiam redes sociais e a agressão passou relativamente despercebida. A partir de 2005, no entanto, o PT foi sendo transformado pela grande mídia na razão de todo o mal da nação com a revelação do escândalo do mensalão por repórteres que se diziam chocados, mas que se recusaram a cobrir o mensalão de FHC. Conforme figuras até então restritas às entranhas da internet foram se tornando parte do mainstream do debate político midiático, cada vez mais as discussões foram sendo pautadas pelo ódio a Lula e a seu partido e por questões de ordem moral.

Em 2011 o STF arquivou uma denúncia contra o deputado
devido sua fala racista em um episódio do CQC.
Se na campanha de 2006 Geraldo Alckmin teve que prometer que não privatizaria as empresas estatais, em 2010 Dilma Rousseff teve que prometer que não legalizaria a interrupção voluntária da gravidez no país que é o campeão mundial em morte de mulheres por abortos malfeitos. Aquela foi a campanha mais suja até então. E o ódio latente ao PT e seus apoiadores (pobres, negros, LGBTs, feministas, etc.) estava pronto para reemergir a qualquer momento. Logo após a posse de Dilma eis que a Band resolve colocar Bolsonaro num episódio de seu CQC. No programa em questão, ele diz à cantora Preta Gil que seu filho jamais namoraria uma negra porque ele recebeu boa educação dos pais. Como todo bom fascista, ele covardemente nega a afirmação e diz que entendeu errado a pergunta, embora a dicção de Preta seja a mais clara possível. O episódio, massificado pelas redes sociais, rendeu-lhe seus primeiros questionamentos na Justiça e também os primeiros fãs fora do estado do Rio de Janeiro, justo aqueles que mais odeiam o PT e tudo aquilo que ele representa.

Em junho de 2013, Dilma Rousseff enfrentou, pela primeira vez, amplos protestos antigoverno. A narrativa de que o PT era a fonte de todo o mal colou, ajudada por uma péssima equipe de comunicação no Palácio do Planalto e por uma certa reclusão da mandatária. A mídia se apressou para pintar Marina Silva (Rede) como a musa dos manifestantes. Antes fosse só ela. Com seu caráter apartidário, os protestos logo foram sendo tomados por elementos de extrema-direita, ao ponto dos próprios organizadores serem expulsos de um ato na Avenida Paulista. Bandeiras do PT foram rasgadas, militantes negros e LGBT foram agredidos. O brasileiro, até então mais preocupado com a final da novela e/ou do campeonato de futebol, sentiu-se empoderado para tomar as ruas e participar do debate político de seu país. Principalmente os analfabetos políticos e aqueles que aprenderam história e sociologia através da revista Veja.

Em 2013 a extrema-direita perdeu a vergonha e tomou as ruas.
Após mais de uma década no poder, a esquerda envelheceu e saiu de moda. O cool agora é se opor ao PT, mas não de maneira crítica e racional. E sim como gado em boiada, o que significa dar um belo tiro no próprio pé. Não importa o histórico do PT em defesa dos trabalhadores; a discussão é emocional. E, justamente por isso, cresce de maneira assustadora o apoio à extrema-direita em todo o país. Bolsonaro possui hoje 7% das intenções de voto segundo a última pesquisa Vox Populi e é o candidato a presidente menos rejeitado pela população, com 34% de rejeição segundo o Ibope. A criminalização do PT e de partidos outrora aliados, fomentada por anos pela grande mídia, não favoreceu seu queridinho PSDB. Justo pelo contrário, fez com que todos os políticos associados a partidos e ideologias tradicionais fossem igualmente repudiados pela população.

Não é incrível a inversão de valores na sociedade brasileira que faz com que o candidato a presidente da extrema-direita seja o menos rejeitado? Aquele que em 2014 disse novamente à Maria do Rosário que não a estupraria porque ela não merece e que homenageou Carlos Alberto Brilhante Ustra — reconhecido pela Justiça como torturador — durante a votação do impeachment. Como o fim da escravidão, o término da ditadura não colocou curativos sobre as feridas abertas daquele período. Tivemos a oportunidade de fazê-lo em 2010, quando o STF analisou um pedido para rever a lei de anistia e punir os torturadores do regime militar, já que tortura é um crime imprescritível e impassível de anistia. Mas não o fizemos e volta e meia essas feridas voltam a sangrar. Talvez se tivéssemos seguido as recomendações da ONU para redemocratização figuras como Bolsonaro hoje não existiriam, como elas não existem na Argentina, no Uruguai e no Chile, referências em transição democrática no Cone Sul. Preferimos seguir o Paraguai (e agora teremos um golpe paraguaio).

Só agora a direita descobriu que estava andando com fascistas?
A Globo, que até então se manteve alheia ao fenômeno Bolsonaro, decidiu fazer uma matéria em tom crítico ao deputado no Fantástico do último domingo. Confesso que não assisti à matéria. O boicote à emissora continua de vento em popa aqui em casa. No entanto, não preciso assistir à matéria para dizer que o efeito almejado pela Globo não será conquistado. Ao dar espaço para Bolsonaro, mesmo que em tom crítico, a emissora dá visibilidade a ele. Deviam ter se posicionado contra Bolsonaro muito antes do episódio da homenagem a Ustra. Mas a sanha da mídia para tirar o PT do poder a qualquer custo não permitia isso. Bolsonaro lhes era útil. Agora que desfecharam o golpe final contra o PT, se voltam contra a direita radical cuja existência ignoraram, como se o antipetismo já não se confundisse com o próprio fascismo. Criam corvos e não querem ser bicados por eles?

terça-feira, 26 de abril de 2016

Os jovens vão às ruas para defender a democracia no Brasil


Há um pouco de notícia boa vindo de uma situação horrível no Brasil, onde o governo do Partido dos Trabalhadores (ou PT) está em retirada, alijado pela corrupção auto-infligida e pelo ataque da direita a suas políticas distribucionistas: os jovens estão aparecendo para defender a social-democracia. 

Mês passado o Brasil testemunhou dois enormes protestos de rua, cada um deles reunindo cerca de um milhão de pessoas. O primeiro, em 13 de março, pedia o impeachment da presidente Dilma Rousseff e recebeu ampla cobertura da mídia nos Estados Unidos. O segundo, em apoio a Dilma e ao Partido dos Trabalhadores, ocorreu cinco dias depois, em 18 de março. Quase não foi noticiado nos veículos de mídia de língua inglesa.

Segundo uma comparação estatística, significativamente mais pessoas de 12 a 35 anos de idade participaram do segundo protesto em comparação ao primeiro. O PT governa o Brasil há 13 anos, sob dois presidentes: Luiz Inácio Lula da Silva (2003—2011) e Dilma Rousseff. Isso significa que a maioria daqueles que saíram às ruas em defesa do PT tem pouca experiência com a vida política antes da governança do PT. Mesmo assim, acham que os valores de esquerda que o partido representa — democracia econômica, democracia participativa, inclusão racial e solidariedade social — valem a pena serem defendidos. Pelo menos o futuro parece pertencer à esquerda, embora o presente nem tanto.

O segundo ponto de polarização é a riqueza: 43 porcento daqueles que tomaram as ruas em 13 de março exigindo a saída de Dilma ganha 10 vezes (ou mais) do que o salário mínimo brasileiro. E, como muitos notaram, o protesto antigoverno em 13 de março tendeu a ser mais pálido, uma vez que a riqueza no Brasil é correlata a tons de pele mais claros.

A fotografia que, segundo Stephanie Nolan, tornou-se um
"emblema" dos protestos antipetistas.
Uma fotografia, como Stephanie Nolan do The Globe and Mail notou, tornou-se um "emblema" do protesto anti-PT, viralizando nas redes sociais. Ela mostra um "casal branco que mora numa rua arborizada de Ipanema. Eles trouxeram com eles seu cachorrinho branco, numa coleira com cores coordenadas, e suas duas filhas bebês, empurradas num carrinho por uma empregada negra trajando o uniforme todo branco que alguns brasileiros ricos insistem que seus trabalhadores domésticos vistam" — o que, num país que "foi a maior e mais contínua sociedade escravista do mundo" e onde a escravidão racial só foi abolida na década de 1880, lembrou a alguns observadores as roupas das escravas domésticas.

O PT vem se desviando das acusações de corrupção desde o primeiro mandato de Lula, com o Congresso brasileiro realizando, de diferentes formas, uma investigação quase que contínua de transações políticas ilegais desde 2005. Como nos EUA, subornos, recompensas ilegais, propinas e favores por baixo dos panos são rotineiros e, no Brasil, envolvem todos os partidos, grandes ou pequenos. Mas foi só após a reeleição de Dilma por uma margem estreita em 2014, enquanto a economia começava a piorar, que as investigações tomaram um rumo hiper-partidarizado, impulsionadas por um Congresso altamente conservador e oposicionista e animadas por uma mídia oligárquica inclinada a tirar o PT do poder. Glenn Greenwald, David Miranda e Andrew Fishman do Intercept esmiuçaram a crise e as dinâmicas classistas e raciais, assim como as maquinações políticas por trás dela.

Durante o último ano, o alvo desta campanha não tem sido tanto assim Dilma — embora agora ela enfrente a ameaça real do impeachment — e sim Lula, visto por muitos como principal chance do PT. Limitado a exercer dois mandatos consecutivos em seu governo, ele poderia tentar um terceiro mandato em 2018, o que muitos na esquerda brasileira veem não apenas como uma oportunidade do PT em manter o poder, mas também (como Gianpaolo Baiocchi discute abaixo) de renovar os princípios de movimento social do partido.

Na América Latina e no Caribe, golpes e tentativas de golpe recentes provocaram a captura de presidentes por formas de segurança — na Venezuela, de Hugo Chávez em 2002; no Haiti, de Jean-Bertrand Aristide em 2004; e, em Honduras, de Manuel Zelaya em 2009. É algo como um ritual a captura servir de humilhação pública. Em 1954, o presidente deposto da Guatemala, o democraticamente eleito Jacobo Arbenz, foi forçado a ficar só de cueca e ser fotografado assim como condição para que pudesse deixar o país. Em Honduras, em 2009, Manuel Zelaya foi preso no meio da noite, vestindo seu pijama.

Pense no que está acontecendo no Brasil como um golpe antecipatório: o esforço coordenado para prejudicar Lula antes de 2018. No mês passado  a polícia levou o ex-presidente em custódia, interrogando-o por três horas e vasculhando sua casa. Mais recentemente, um juiz liberou interceptações telefônicas de uma conversa que ele teve com Rousseff, na qual eles discutiam sua nomeação como ministro-chefe da Casa Civil dela. Em seguida a Justiça impediu a nomeação. Agora um promotor pede que o ex-presidente seja colocado em "prisão preventiva". Lula tem responsabilidade significativa pela crise atual, não apenas por qualquer corrupção na qual o PT esteja envolvido, mas também por seu papel em transformar o PT de um movimento social num partido mais tradicional, separado de sua base mobilizada. Esta separação funcionou razoavelmente bem enquanto a economia estava crescendo, mas tornou-se catastrófica quando ela contraiu. Divorciado de sua fonte original de poder social, o governo do PT, durante o segundo mandato de Dilma, adotou a austeridade.

Mesmo assim, por mais que a crise seja auto-infligida, não dúvida de que a campanha anticorrupção é um véu para um projeto coordenado de restaurar o poder classista das elites econômicas e políticas, brancas, do Brasil. Até os eventos recentes, Lula, apesar de seu próprio papel na transformação do PT, se colocava como porta-estandarte dos esforços para devolver o partido às suas raízes operárias. Este esforço sofreu um grande revés e permanece incerto se Lula, hoje com 70 anos de idade, conseguirá recuperar-se da queda nas pesquisas de intenção de voto e dos promotores audaciosos. Se ele conseguir, será apenas através da mobilização dos jovens que saíram às ruas em 18 de março e que estão chamando a campanha "anticorrupção" daquilo que ela é: um golpe.

Seria difícil relatar a crise atual de maneira exagerada, tanto para a sociedade brasileira quanto para a esquerda latino-americana em geral. Menos de uma década atrás, Lula era uma peça-chave num bloco ascendente de países, que incluía a Argentina e a Venezuela, que efetivamente empurrou para trás a ortodoxia militarista e de livre-mercado de Washington. Como maior e mais diversificada economia da região, o Brasil serviu de contra-pesa para Washington. acreditando que uma nova economia política regional se aglutinaria em torno de sua força gravitacional. Agora o Brasil (e a Venezuela) encontram-se em caos político e a Argentina foi devolvida aos negociantes de títulos.

Gianpaolo Baiocchi, professor da
Universidade de Nova York.
Pedi a opinião de Gianpaolo Baiocchi, sociólogo e colega na Universidade de Nova York — onde ele é diretor do Laboratório de Democracia Urbana — que tem escrito amplamente sobre a política brasileira (incluindo uma série de livros pioneiros sobre as experiências radicais do Brasil em orçamento e governança participativa, incluindo Bootstrapping Democracy e Militants and Citizens), sobre a crise. Há um número de questões importantes em seus comentários abaixo, mas um ponto especial que se deve manter em mente é que a perseguição da elite não é motivada pelos fracassos do PT — apesar das atuais condições econômicas sombrias — e sim por seu notável sucesso em reduzir a pobreza e democratizar a sociedade.

Greg Grandin: Os acontecimentos estão fluídos no Brasil, você poderia nos dar uma visão geral da situação e o que, na sua opinião, levou ao impasse atual?

Gianpaolo Baiocchi:
Enquanto escrevo, tivemos uma semana de protestos de rua contra e a favor do governo. As elites brasileiras e muitas figuras políticas na direita e na centro-direita estão apostando num tipo de ruptura institucional — seja ela uma renúncia ou a remoção aberta de Dilma Rousseff, a atual presidente, no segundo mandato pelo Partido dos Trabalhadores. Notavelmente, o Judiciário pareceu desistir de qualquer pretensa imparcialidade, elevando os ataques a Rousseff e ao ex-presidente Lula e revelando publicamente horas de grampos do ex-presidente Lula.

Dilma está enfrentando um processo de impeachment no Congresso desde o ano passado. A alegação legal para o impeachment é na verdade uma tecnicalidade relativa ao orçamento nacional: a liberação de recursos do orçamento de um ano para o seguinte, uma manobra fiscal questionável, mas amplamente praticada no Brasil em todos os níveis de governo. Ao mesmo tempo, há uma abrangente investigação de corrupção, a chamada "Operação Lava Jato", que desenterrou uma série de esquemas de pagamentos envolvendo a empresa petrolífera estatal, muitos políticos de todo o espectro político e empreiteiras. Até recentemente o processo de impeachment parecia improvável de obter êxito — sua base legal era fraca, Rousseff e o Partido dos Trabalhadores tinham aliados o suficiente no Congresso para barrá-lo e uma porção significativa do público parecia não ter apetite para o que parecia um assalto velado ao poder contra uma presidente impopular, mas democraticamente eleita. Rousseff, é claro, está numa posição tênue há algum tempo, presa entre o ódio da elite, o isolamento das bases de apoio do partido, por ter levado a cabo medidas de austeridade, e uma economia sem crescimento.

Mas se até agora havia uma chance razoável de uma resolução e que ela terminaria seu mandato, no momento o país se encontra mergulhado numa crise muito complexa. O ex-presidente Lula foi acusado de posse indevida de um pequeno apartamento e foi temporariamente preso e interrogado no início de março. Rousseff então nomeou-o para um cargo de ministro — uma medida que iria transferir os procedimentos legais contra ele para a Suprema Corte e reforçar a popularidade em declínio dela. Sua nomeação tem sido questionada nos tribunais e é incerto se ele poderá assumir o cargo. Mas, numa medida absolutamente sem precedentes — e legalmente questionável — projetada para inflamar o descontentamento popular, o juiz que executa a investigação de corrupção divulgou ao público os arquivos de áudio de uma escuta que ele havia ordenado entre Lula e Rousseff. Embora os arquivos de áudio na verdade não revelam muita coisa, o ato simbólico da escuta, a audácia da liberação do áudio, a humilhação de uma "condução coercitiva" e interrogatório numa delegacia de polícia assinalaram para muitos brasileiros que o Judiciário não é mais uma entidade neutra.

A situação no Brasil é hoje acelerada e muito complexa, com uma sobreposição de crises — econômica, política, legal-institucional — diante de um vácuo processual para o qual não há, literalmente, procedimentos estabelecidos. Para muitos brasileiros há a sensação de que não há regras, de que os conflitos políticos são resolvidos através da mobilização nas ruas ou sob uma lógica de vale tudo. Os precedentes que estes acontecimentos estão definindo para a democracia brasileira são muito perigosos do ponto de vista de uma democracia institucionalmente estável.

Leitores da cobertura de língua inglesa (com a exceção de alguns meios, como The Intercept) têm recebido um relato muito enviesado do escândalo de corrupção, calçado numa narrativa que foca mais na queda de popularidade do partido governista e de Dilma. O que falta nesse relato?

Muitos na mídia internacional têm apenas repetido o viés editorial e de reportagem da mídia dominante do Brasil, que tem, na maior parte do tempo, essencialmente feito agitação a favor do impeachment por vários meses. Essas coberturas têm sido completamente parciais, frequentemente enganadoras, e não há sequer a pretensão de apresentar perspectivas diferentes. Como resultado falta, à mídia internacional, várias peças importantes da história.

Em primeiro lugar, os leitores do New York Times ficariam surpresos ao descobrir que há muita oposição ao impeachment. A marcha em apoio ao governo atraiu, segundo estimativas da mídia independente, mais de um milhão de brasileiros às ruas. Embora os movimentos sociais tenham mantido uma postura crítica às políticas recentes de Rousseff, está claro que eles vão se mobilizar e sair às ruas para defender as instituições democráticas e as conquistas sociais das administrações do PT. Os protestos em defesa do governo também atraíram uma população mais ampla e diversa do que os comícios pró-impeachment. Negros, pobres e ativistas abertamente gays são mais visivelmente presentes nos protestos pró-governo de uma maneira que simplesmente não é o caso nas mobilizações pró-impeachment (embora pesquisas tenham mostrado que os muito pobres estejam essencialmente ausentes de ambos). Um grande número de intelectuais brasileiros tem similarmente se oposto ao impeachment, incluindo acadêmicos, juristas e figuras públicas de todo o espectro político. Figuras como Caetano Veloso, Gilberto Gil e o ex-ministro Bresser-Pereira têm sido vozes ativas na questão e, curiosamente, suas declarações nunca aparecem na mídia internacional.

Em segundo lugar, há pouca discussão sobre o revanchismo conservador do passado recente do Brasil. Os protestos antigoverno e o impeachment precisam ser entendidos como parte de uma reação crescente no Brasil contra os últimos doze anos de distribuição de renda dirigida pelo PT. Há muito mais em jogo para os defensores do impeachment do que apenas a corrupção. É certo que Rousseff nunca foi implicada nas investigações de corrupção ela mesma. E as investigações de corrupção têm implicado políticos de muitos partidos, com a vasta maioria dos implicados pertencentes ao direitista Partido Progressista. Ainda assim, os protestos são feitos sempre visando Rousseff e o PT. Então eles não são só sobre a corrupção, mas, ao invés disso, são sobre o ressentimento à esquerda. Nos últimos anos tem havido uma hostilidade aberta da elite e da classe média contra as minorias, os pobres e o PT (visto como patrono político deles) de forma que simplesmente não se via antes. Há, hoje, uma expressão de sentimentos de direita na política que tem se aproveitado desse descontentamento da elite. O Congresso atual é, por exemplo, mais conservador do que em qualquer outra época da história recente. Alguns dos políticos mais populares do Congresso atualmente defendem políticas como a tortura e o extermínio dos povos indígenas. O Congresso agora possui uma expressiva "bancada da bala", que apoia respostas militaristas ao crime, assim como uma substancial bancada fundamentalista cristã que se opõe aos direitos dos gays e uma bancada ruralista muito grande, que se opõe à reforma agrária e aos direitos indígenas.

Você poderia comentar sobre a dimensão racial da crise? Há uma sensação de que as leves políticas distribucionistas do PT provocaram nos ricos e brancos uma histeria racial e, agora, com a economia nocauteada, eles estão agindo para recuperar sua vantagem e restaurar a "correta" hierarquia racial.

Eu acho que sim. Este é, como você sabe, um tópico difícil de se discutir abertamente no Brasil. A composição dos grupos sociais mobilizados contra Rousseff é completamente diferente dos setores que apoiam-na. Não há assim tantos dados em si sobre os participantes dos últimos protestos, mas os dados que nós temos mostram pelo menos um perfil classista claro — os manifestantes pró-impeachment levam uma vida melhor e todas as reportagens mostram claramente que os negros e os pobres estiveram em maior volume para defender o governo. E sabemos que os sentimentos políticos sobre o Partido dos Trabalhadores e suas plataformas se tonaram polarizados.

Se considerarmos o que ocorreu no Brasil nos últimos doze anos ou mais sob o PT, houve uma grande ascensão social. A pobreza extrema foi reduzida em 75 porcento e a pobreza no geral em 65 porcento, em maior parte através das transferências diretas de dinheiro, hoje recebidas por 44 milhões de brasileiros, ou um em cada quatro. O salário mínimo, ajustado pela inflação, dobrou. Essas são políticas generalistas, mas dadas as profundas hierarquias raciais do Brasil, seus principais beneficiários foram os negros. E uma das questões mais perturbadoras para os brasileiros da elite — aquela que realmente traz à tona seus piores sentimentos e preconceitos — tem sido a ação afirmativa ("quotas") nas universidades. Um bastião tradicional do privilégio elitista, a maioria das universidades de elite agora reservam quase metade de suas vagas para os candidatos da ação afirmativa. Embora o Brasil esteja longe de se tornar uma verdadeira democracia racial e ainda existam questões terríveis em relação aos assassinatos de homens negros pela polícia, a ordem racial foi perturbada.

Podemos esperar alguma notícia boa? Há alguma chance dessa crise provocar uma revitalização do PT? A história tradicional do PT é que, após as três primeiras candidaturas fracassadas de Lula à presidência, o partido, para finalmente vencer em 2002, precisou se afastar de suas raízes nos movimentos sociais e se tornou um veículo eleitoral tradicional, engajando-se em pactos desmobilizantes com os partidos tradicionais, contando com consultores e construindo uma parede de fogo entre sua liderança e os operários. Há algumas chance de que a mobilização em defesa de Dilma, e agora Lula, possa forçá-lo a recuperar sua energia de oposição? E, se isso acontecer, o que isso significaria para as eleições presidenciais de 2018?

Algumas pessoas estão esperançosas sobre o papel de Lula no governo Dilma, se permitirem que ele assuma. Ele tem sido crítico das políticas de austeridade e tem mobilizado sindicatos e movimentos sociais contras as políticas de austeridade. Poderíamos esperar a baixa da taxa de juros, mais gastos com políticas sociais e infraestrutura se ele assumir o cargo. Há conversas sobre sua tentativa de articular um novo pacto social em torno de sua plataforma desenvolvimentista. Ele realmente possui um carisma tremendo e é um político muito apto e muitos esperam que ele seja capaz de mobilizar uma aliança nacional em torno desse projeto progressista. O que aterroriza as elites no Brasil é a possibilidade de uma candidatura presidencial de Lula em 2018, razão pela qual há um enorme esforço para desacreditá-lo agora.

Mas eu acho que independente dele assumir ou não, este tem sido um período importante de reflexão para a esquerda no Brasil e para o PT em particular. Há um número de pessoas engajadas num processo de repensar o que a próxima iteração do que uma estratégia eleitoral de esquerda deve ser. Pessoas como o ex-prefeito de Porto Alegre, Tarso Genro, têm levantado essas questões, assim como pessoas em partidos semelhantes que surgiram do PT, como o PSOL e o PSTU. A novidade do PT era que ele era um partido "onde os movimentos têm voz", E uma coisa que se tornou abruptamente clara nos protestos de 2013 foi que o partido — após todo este tempo no governo — se tornou muito distante de alguns dos novos movimentos emergentes na sociedade brasileira, Há várias questões que precisam ser tratadas — é certo que ninguém esperava tamanha quantidade de reação da elite; outra questão é a necessidade de uma estratégia de mídia capaz de competir com os grandes meios de comunicação do Brasil; e, é claro, há várias questões sobre democracia interna no partido e como lidar com a corrupção. Alguns sugeriram até uma refundação do partido, enquanto outros agora questionam a própria estratégia de priorizar as eleições em primeiro lugar. Há muitas lições a serem aprendidas, uma série de realizações importantes, assim como reveses que servem de aprendizado nessas últimas três décadas de PT. Eu verdadeiramente acho que há um caminho para as forças progressistas saírem desta crise e que pode lhes reenergizar para as eleições de 2018 e além.

Isto, é claro, presumindo que ainda haverão instituições políticas no Brasil quando esta crise acabar, razão pela qual a maioria dos ativistas progressistas no Brasil estão fazendo da defesa da democracia social sua primeira prioridade.

segunda-feira, 25 de abril de 2016

Diplomacia do "apito-de-cachorro"(*) sinaliza apoio ao golpe no Brasil

Nota: (*) Chama-se diplomacia de apito-de-cachorro aquela que envia dois sinais: um para o público e outro para os diplomatas. Possui esse nome porque o "apito-de-cachorro" toca a uma frequência muito mais alta do que aquela que o ouvido humano é capaz de captar, sendo seu sinal ouvido apenas pelos cães. 



No dia seguinte à aprovação do impeachment pela Câmara dos Deputados do Brasil, um dos líderes da iniciativa, o senador Aloysio Nunes, embarcou para Washington, D.C. Ele havia agendado reuniões com várias autoridades dos Estados Unidos, incluindo Thomas Shannon do Departamento de Estado.

Shannon tem um perfil relativamente discreto na mídia, mas é o terceiro oficial mais importante do Departamento de Estado dos Estados Unidos. Ainda mais significativo, neste caso, ele é a pessoa mais influente no Departamento de Estado no que diz respeito à política dos EUA para a América Latina. É ele quem irá aconselhar o Secretário de Estado, John Kerry, sobre a atuação dos EUA no decorrer do processo de destituição da presidente Dilma Rousseff.

A disposição de Shannon em se encontrar com Nunes dias após a votação do impeachment manda um sinal poderoso de que Washington embarcou com a oposição brasileira nesta aventura. Como sabemos disso? Simples: Shannon não precisava realizar esta reunião. Se quisesse demonstrar a neutralidade de Washington neste conflito acirrado e extremamente polarizado, ele não realizaria uma reunião com protagonistas de alto escalão de nenhum dos dois lados, principalmente no momento atual.

Em 2009, quando conclamou os atores políticos a respeitar a
democracia, a Casa Branca estava, de fato, dando apoio ao
golpe, mensagem que só foi entendida pelos próprios golpistas.
O encontro de Shannon com Nunes é um exemplo do que pode-se chamar de "diplomacia de apito-de-cachorro". Ela quase não aparece no radar da mídia que cobre o conflito e, portanto, não deve gerar repercussão negativa. Mas todos os protagonistas entenderão o que significa. É por isso que o partido de Nunes, o PSDB, divulgou a reunião.

Para ilustrar um outro exemplo da diplomacia de apito-de-cachorro: em 28 de junho de 2009, o Exército hondurenho sequestrou o presidente do país, Mel Zelaya, e o levou para fora do país. A declaração da Casa Branca não condenou este golpe e, em vez disso, conclamou "todos os atores políticos e sociais de Honduras" a respeitar a democracia.

Esse sinal de apito-de-cachorro funcionou perfeitamente; o mais importante é que os líderes do golpe e seus apoiadores em Honduras, assim como todos os diplomatas em Washington, entendessem o seu significado, mesmo com a enxurrada de pronunciamentos de todo o globo condenando o golpe e exigindo a restauração do governo democrático. Todos sabiam que que isso era, em código diplomático, um claro sinal de apoio ao golpe. Os acontecimentos dos seis meses seguintes, com Washington fazendo todo o possível para consolidar e legitimar o governo golpista, foram absolutamente previsíveis, se baseados neste sinal inicial. Hillary Clinton mais tarde admitiu em seu livro de 2014, Hard Choices, que ela obteve êxito ao evitar o retorno do presidente democraticamente eleito.

Tom Shannon tem uma reputação entre os diplomatas latino-americanos de pessoa afável, um funcionário de carreira experiente, que está disposto a sentar e negociar com governos que estão em desacordo com a política dos EUA para a região. Mas ele tem muita experiência com golpes. Alguns dos e-mails vazados de Hillary Clinton elucidam bem seu papel na consolidação do golpe hondurenho. Ele também era funcionário de alto escalão no Departamento de Estado durante o golpe de abril de 2002 na Venezuela, em que há inúmeras evidencias documentais de envolvimento dos EUA. E, quando o golpe parlamentar ocorreu no Paraguai em 2002 — de certa forma similar ao que ocorre no Brasil, mas com um processo que afastou e removeu o presidente em apenas 24 horas — Washington também contribuiu para a legitimação do governo golpista em seguida. No golpe parlamentar do Paraguai, em 2012 , no balanço final. (Por contraste os governos da América do Sul suspenderam a participação do governo golpista no Mercosul, bloco comercial regional, e na Unasul). Shannon era embaixador dos EUA no Brasil à época e uma das autoridades mais influentes na política do governo norte-americano para o Hemisfério ocidental.

Questionado a respeito da visita de Nunes, o Departamento de Estado dos EUA disse que "este encontro foi planejado há meses e agendado por solicitação da Embaixada do Brasil". É uma resposta irrelevante. Significa apenas que havia funcionários da embaixada brasileira envolvidos no agendamento dos encontros, para fins protocolares. Não implica em qualquer consentimento do governo Rousseff, ou altera a mensagem política que o encontro com Shannon envia à oposição no Brasil.

Tudo isso é coerente com a estratégia de Washington em resposta aos governos de esquerda que têm comandado a maior parte da região no século XXI. Eles raramente perdem uma oportunidade de sabotar ou de se livrar de qualquer um deles e seu desejo de substituir o PT por um governo mais compatível e de direita é bastante óbvio.

Mark Weisbrot é co-diretor do Centro de Pesquisas Políticas e Econômicas em Washington e presidente do Just Foreign Policy. É também autor do livro "Failed: What the ‘Experts’ Got Wrong About the Global Economy“ (2015, Oxford University Press).

domingo, 24 de abril de 2016

Lições do Brasil

Editorial do Buenos Aires Herald (Argentina)

Uma linha de argumentação sendo colocada a favor da presidente do Brasil, Dilma Rousseff, enquanto ela luta contra o impeachment é que ela é vítima da seletividade, uma vez que as mesmas questões não estão sendo levantadas sobre seus perseguidores políticos amplamente corruptos — tal raciocínio é tão certo quanto errado. É errado porque, de várias formas, governos que defendem ideais progressistas e de esquerda devem ter padrões éticos mais elevados do que aqueles que abraçam descaradamente o capitalismo selvagem, em especial no que diz respeito à má alocação de recursos públicos — mesmo assim, tais críticos também estão certos, porque no fim das contas ainda estamos discutindo sobre a seletividade.

Autoridades que roubam do povo devem de fato ser presas se julgadas com todas as garantias legais, mas a simplicidade básica deste princípio é enlameada por juízes do establishment e pela mídia de direita, que contradizem a sinceridade republicana em cada etapa do processo que cobrem — com a magnitude que dão a eventos menores, com seus vazamentos intencionais, etc. Saindo um pouco do exemplo brasileiro, tomemos um episódio local — o caso Hotesur evolvendo hotéis patagonianos ligados à família Kirchner. Se julgado conforme a acusação, este caso expõe uma transferência sistemática de recursos públicos para contas em bancos privados — isto é extremamente sério e deve ir a julgamento. Mas não sob um juiz como Claudio Bonadío, com um passado obscuro e que invade sem o devido mandato e joga as garantias legais no lixo. Tampouco o processo permanece totalmente limpo se, enquanto o procedimento jurídico está sendo abusado, a imprensa silencia-se sobre escândalos igualmente graves.

Contudo, por mais válidos que sejam, nenhum dos argumentos acima são suficientes para aqueles que defendem governos progressista, uma vez que seus líderes estão sendo acusados de corrupção e há todas as chances de que as acusações sejam válidas em pelo menos alguns casos. Tais defensores podem sempre choramingar contra o golpismo, que muitas vezes pode ser verdadeiro (como no caso do Brasil), mas a única solução real é garantir que nenhum líder roube para começo de conversa. Isto, por sua vez, pode implicar numa certa mudança estrutural nos movimentos progressistas, de cima para baixo e de cima para baixo — em vez de líderes carismáticos e onipotentes dando nome aos movimentos insistindo que os fins justificam os meios, militantes lúcidos devem reivindicar o controle para garantir que a riqueza não seja extraviada antes que possa ser redistribuída. E se puderem fazê-lo antes de O Globo e Bonadío começarem a ditar as regras, tanto melhor.

sábado, 23 de abril de 2016

Por que alguns falam que o Brasil está no meio de um “golpe suave”?

Por Héctor Perla Jr., em The Washington Post (EUA)

Héctor Perla, Jr.
O governo democraticamente eleito do Brasil está no noticiário, mas estaria ele no meio de um golpe? Ao contrário dos golpes latino-americanos do século XX, a turbulência atual no Brasil não envolve o Exército nem derramamento de sangue – mas o Brasil pode passar por uma mudança de regime, um “golpe suave”.

Tenho estudado a política latino-americana pelos últimos 20 anos e documentado as estratégias utilizadas pela direita para manipular a opinião pública e desacreditar governos socialistas. O que está acontecendo no Brasil já aconteceu em outros lugares.

Breve resumo da crise política no Brasil

No Brasil, gigante da América do Sul do tamanho de um continente e rico em recursos naturais, o Partido dos Trabalhadores (PT) venceu a presidência em 2003 e permaneceu no poder nos últimos 13 anos. Comandado por Luis Inácio Lula da Silva, líder carismático que a Newsweek uma vez chamou de “o político mais popular da Terra”, o PT consolidou seu amplo apelo através de políticas econômicas que geraram crescimento com baixa inflação e de programas sociais para distribuir renda num dos países mais desiguais do mundo.

Em 2011, Dilma Rousseff substituiu seu mentor e se tornou a primeira presidenta do país. Rousseff nunca teve o mesmo nível de popularidade que Lula, que em 2016 foi implicado num caso de corrupção e lavagem de dinheiro envolvendo a empresa estatal de petróleo, Petrobras. Os promotores nunca acusaram Rousseff de envolvimento com corrupção, mas o presidente da Câmara dos Deputados levou adiante um processo de impeachment contra ela por suposto mau uso de dinheiro de bancos públicos para cobrir lacunas no orçamento do governo. Em 11 de abril, uma comissão na Câmara votou a favor do impeachment.

Espera-se que a totalidade dos membros da Câmara vote sobre o impeachment em 17 de abril. Se uma maioria de dois terços votar pelo impeachment, então o processo segue para o Senado brasileiro.

Tanto Lula quanto Rousseff acusam os partidos de direita do Brasil se conspirar para derrubar o governo do PT, chamando isso de uma tentativa de golpe. Numa entrevista em 12 de abril, Rousseff acusou o vice-presidente Michel Temer de conspirar abertamente para “desestabilizar uma presidente legitimamente eleita”. No início de abril, milhares de apoiadores de Rousseff se manifestaram nas cidades brasileiras, cantando “não vai ter golpe”.

Mas há uma história mais profunda do que apenas a corrupção ou o oportunismo dos adversários políticos de Rousseff. Eventos recentes na América Latina sugerem que o que está acontecendo no Brasil faz parte de uma ampla campanha da direita para manchar o PT e derrubar tanto Rousseff quanto Lula.

Usando um verdadeiro leque de táticas, os partidos de direita procuram difamar os políticos de esquerda que estão no poder através de meios institucionais, assim como meios não-eleitorais e antidemocráticos.

Vimos uma reação similar da direita contra os regimes socialistas obter êxito no Paraguai e em Honduras. Os partidos de direita tentaram minar regimes de esquerda na Bolívia, em Equador, em El Salvador e na Venezuela. Aqueles na esquerda que são vítimas da direita latino-americana veem esta estratégia como equivalente do século XXI a um golpe de estado.

Investigações corruptas da corrupção?

No caso brasileiro, os pedidos de afastamento baseiam-se em acusações inconsistentes, indiretas e seletivas. Até hoje não há evidências que liguem Rousseff ao escândalo de corrupção. Enquanto isso, o presidente da Câmara, Eduardo Cunha, que está liderando o processo de impeachment, foi apontado nos Panama Papers como recebedor de propina de uma empresa multinacional envolvida no caso de corrupção da Petrobras. De maneira semelhante, muitos dos políticos de direita que lideram e apoiam os esforços pelo impeachment estão de fato enfrentando acusações de corrupção eles mesmos.

Se o processo de impeachment tiver êxito, Michel Temer se tornará o primeiro presidente do Brasil a representar seu partido (o PMDB) em mais de 25 anos. Mas o próprio Temer pode, em breve, enfrentar um processo de impeachment por corrupção.

Embora o alvejamento de Rousseff pela direita possa ser considerado antiético, é legal e está sendo levado a cabo através de canais institucionais formais. Mas os processos de impeachment são apenas um dos elementos da reação da direita contra governos socialistas da América Latina.

Um olhar profundo sobre as táticas contra governos de esquerda

Os ataques mais poderosos – e ilegais – contra a esquerda na América Latina envolvem espionagem, hackeamento on-line e cyberataques, incluindo campanhas de difamação através de mídias sociais e veículos de notícias. Times de operadores políticos high-tech conduzem espionagem ilegal, o que inclui a instalação de spywares em escritórios da oposição e subsequente roubo das estratégias de campanha e da base de dados de doadores de seus oponentes. Estas equipes hackeiam e desfiguram sites de campanha e caluniam adversários. Segundo uma análise, o uso de contas falsas em mídias sociais para manipular a opinião pública foi peça-chave nas tentativas de desacreditar candidatos socialistas na Nicarágua, na Colômbia, na Costa Rica, no México e em outros países.

Conforme discutido aqui, um juiz ordenou que fossem grampeadas as conversas telefônicas entre Rousseff e Lula – para que houvesse uma aparência de justificativa legal. Numa medida altamente incomum, o juiz que ordenou os grampos imediatamente revelou o conteúdo das gravações entre os dois para o público. Instantaneamente, veículos de informação e perfis nas redes sociais começaram a manipular as conversas para dar-lhes a aparência de infração criminal e inflamar a opinião pública contra o governo Rousseff.

Enquanto tudo isso pode soar como uma teoria da conspiração, um artigo recente na Bloomberg, “Como hackear uma eleição”, desnudou a profundidade e a difusão dessa estratégia da direita.

O hacker internacional Andres Sepulveda enfrenta um período na cadeia por seu papel num movimento internacional da direita para interferir em várias eleições latino-americanas. Através de suas revelações, podemos conhecer as táticas institucionais, psicológicas, midiáticas e de redes sociais que a direita desenvolveu para desafiar o socialismo do século XXI na América Latina. Embora Sepulveda não tenha sido contratado para trabalhar no Brasil, a campanha de difamação contra Rousseff adota várias ideias de sua cartilha.

Por ora o PT está reagindo. Um partido político bem organizado nacionalmente, o PT não deve ceder nem mesmo se o impeachment de Rousseff avançar. Mas o que acontecerá nas próximas semanas no Brasil trará implicações de longo prazo para os governos socialistas democraticamente eleitos de toda a América Latina.

Héctor Perla, Jr. é professor-assistente de estudos latino-americanos e hispânicos na Universidade da Califórnia em Santa Cruz. Seu livro “Sandinista Nicaragua's Resistance to US Coercion” será publicado em junho pela Universidade de Cambridge.

quarta-feira, 20 de abril de 2016

Bancada cristã: me incluam fora dessa

Parte de mim sente-se na obrigação de pedir desculpas aos cidadãos brasileiros pelo episódio grotesco promovido no último domingo pela bancada cristã na Câmara dos Deputados durante a votação do pedido de impeachment da presidenta Dilma Rousseff. Teve deputado dito "cristão" exaltando um notório torturador do regime militar, teve uma overdose da utilização do santo nome em vão e teve até mesmo deputado católico negando a Confederação Nacional dos Bispos do Brasil por esta ter se posicionado ao lado de nossa frágil democracia. Quero muito pedir desculpas, mas a verdade é que eu não tenho absolutamente nada a ver com aquilo. Minha igreja não deturpa o Evangelho para tornar seus líderes ricos e influentes politicamente. Justo ao contrário, ela prega o Evangelho social de Jesus Cristo, acolhendo a todos e se posicionando a favor das liberdades democráticas do povo brasileiro. Minha igreja está do lado do povo.

Num artigo recente para o Huffington Post, a professora de inglês Mary Ann Ware enumerou dez estereótipos comuns sobre os cristãos, que as denominações neopentecostais tanto ajudam a propagar. Muitas vezes sou vítimas desses estereótipos sem comungar com o discurso dessas igrejas. Graças a incendiários de orixás e espancadores de crianças candomblecistas, os não-cristãos têm uma imagem muito negativa de nós. Se pudesse, eu mesmo proibia essas pessoas de usarem o rótulo "cristão". Elas sofreram lavagem cerebral e foram levadas a crer que só o caminho delas leva a Deus. No entanto, nem todo mundo que escolhe ser cristão tem a mente fraca. Eu, por exemplo, escolhi minha própria igreja e meu QI é superior ao de 70% da população mundial. Não nego a ciência e a evolução das espécies e jamais compraria a "fragrância de Jesus" que deixa televangelistas podres de ricos. Também nunca votaria num candidato de extrema-direita porque o pastor mandou.

Assim como Dilma Rousseff,
Jesus também foi torturado.
Não faço do meu cristianismo uma questão de ativismo. Sim, o que Jesus pregou tem muito a ver com a atualidade, em especial com as desigualdades sociais — e o Papa Francisco expõe isso de maneira brilhante. No entanto, usar o nome de Cristo para defender seu ponto de vista é admitir que suas ideias são tão frágeis que não se sustentam sem o manto da religião. O debate político, que deveria pertencer a todos os cidadãos, vira uma questão exclusiva de quem crê em Deus. E logo bandidos que não têm nada a ver com a mensagem de Cristo se escondem sobre esse manto. Duvido muito que o nazareno, vítima de tortura dos romanos, faria campanha para o mais novo garoto-propaganda do Partido Social Cristão (PSC), Jair Bolsonaro, que saudou o torturador de Dilma, Carlos Alberto Brilhante Ustra, ao falar ao microfone no último domingo. Um cristão de verdade ama seus inimigos e não se vale do episódio mais brutal de sua vida para humilhá-lo.

O que se viu na Câmara dos Deputados no domingo foi um escárnio aos valores cristãos. Foi, nas palavras do deputado Chico Lopes, um "encontro de bons maridos e bons pais". Seres humanos quase perfeitos diante de uma Dilma Rousseff imperfeita. Conforme escreve Mary Ann, "a ideia principal do cristianismo é que Deus estende a nós sua graça e seu perdão através de seu filho". Ora, seres perfeitos, pais e maridos exemplares, não precisam de perdão, logo não são cristãos. Felizmente a máscara da perfeição da bancada cristã não demorou a cair. Um dia após a votação o marido da deputada Raquel Muniz — eleita pelo PSC e hoje no Partido Social Democrático (PSD) — foi preso pelos crimes de estelionato, prevaricação, peculato, falsidade ideológica e dispensa de licitação pública. Seria retribuição divina por tantas violações ao 3° mandamento (2° na tradição católica) num curto período de tempo?

É fácil perder a paciência com quem se esconde sob o manto
religioso para agredir quem tem outra concepção de mundo.
A situação deplorável do Congresso se dá porque muitos acreditam que ser cristão é um atestado de bons antecedentes criminais. Me recuso a acreditar em qualquer candidato (e cidadão) só porque ele diz ser cristão. Saber citar versos bíblicos não significa nada. Que lindo você saber que o Levítico condena os homossexuais, mas você sabia que o próprio Jesus Cristo o violou? Jesus foi enviado a este mundo para reformar a lei judaica e em sua comitiva aceitava a participação de ex-prostitutas e ladrões. Enquanto Jair Messias Bolsonaro gritava "queima-rosca" para Jean Wyllys enquanto este votava, o outro Messias disse a uma turba de homens prestes a linchar uma prostituta que eles não poderiam julgá-la porque não eram Deus e também tinham seus muitos pecados. Noutra ocasião, disse "não julgueis para não serdes julgados", lembrando que somos medidos com a mesma régua que usamos para medir os outros. E foi assim que um empurrão deu origem a uma cusparada.

Por fim, a obsessão dos cristãos — fora e dentro do Congresso — com questões de ordem "moral" é fascinante. Como se existisse uma única "moral" que deveria se aplicar a todos os 200 milhões de brasileiros, muitos dos quais nem são cristãos. Dentro do próprio cristianismo existem várias morais. Apesar do culto debochado de domingo na Câmara e da cruz pendurada no plenário do Supremo Tribunal Federal, o Estado brasileiro ainda é laico e impor um único conjunto de valores morais à totalidade da população é inconstitucional — se bem que derrubar presidente sem crime de responsabilidade também é. Nem o próprio Jesus andava só com aqueles que possuíam os mesmos valores que ele. Como ser iluminado que era, ele sabia que é na diferença que crescemos. Viver numa bolha contraria os ensinamentos de Cristo. Mas parece que isso é o de menos para deputados que violam muitos senão quase todos mandamentos enquanto se escondem sob legendas ditas cristãs.

Sim, sou cristão, mas minha turma é outra.
Por mais que o escárnio religioso de domingo me entristeça, não tenho porque pedir desculpas por aquilo. Fui criado na Igreja Católica e ano passado decidi abraçar a fé anglicana. Sequer conheço o conjunto de crenças dos evangélicos, a não ser aquilo que a mídia apresenta. O censo do IBGE me classifica como um "evangélico", embora comparar a Igreja Anglicana às principais denominações evangélicas do Brasil equivale a comparar o Partido da Causa Operária (PCO) ao Democratas. Temos outra visão de mundo, outra concepção do que significa ser cristão. A fé deles foi individualizada, afastada do contexto social pelo neoliberalismo, e isso está nítido nas declarações dos membros da bancada dita cristã ao votar pelo afastamento de Dilma Rousseff — "pela minha família", "minha esposa", "meus filhos", "meus pais", etc. Minha fé, por sua vez, não é individualista, portanto não me exijam um pedido de desculpas; sou cristão, mas não sou responsável pela bancada cristã e estou tão chocado quanto um não-cristão. 

sábado, 16 de abril de 2016

Jango vive!

João e Maria Thereza Goulart na Central do Brasil, RJ. 
Um espírito ronda o pronunciamento que Dilma Rousseff faria ontem nas emissoras de rádio e televisão da nação — mais tarde vazado nas redes sociais. É o espírito de Jango no comício da Central do Brasil. É muito simbólico para mim quando vejo filhos e netos do ex-presidente João Goulart se posicionando contra o impeachment que planeja golpear os direitos e benefícios dos trabalhadores brasileiros. A figura de Jango sempre foi muito adorada por mim. Por isso, mantenho meus ouvidos abertos à família Goulart. A direita sempre levantou muitas suspeitas sobre eles e, inclusive, me incomoda ver pessoas de esquerda reproduzindo essas mentiras. Pouco me importa a vida pessoal de Jango e de seus familiares. O que me interessa é que ele quis trazer o Brasil para a contemporaneidade.

Seu programa de governo não era fundamentalmente diferente daquele aplicado pelos democratas nos Estados Unidos. No entanto, nossa elite mesquinha não tolera o mínimo de democratização, de efetivação da cidadania — ainda mais quando proposta por um de seus. Daí o fato de Chico Buarque ser mais atacado e cobrado por seus posicionamentos do que Emicida. No contexto da Guerra Fria, a elite correu até o norte para alertar Washington sobre o perigo socialista que Jango representava — informes estes que agora, contra Dilma, não encontram muito eco na capital americana. Deposto, Jango precisava então ser desconstruído e até mesmo eliminado. A elite precisa destruir — física e simbolicamente — quem ameaça sua paz. Quer voltar a dormir tranquila após ver no jornal um recorte que exclua a luta de classes que sempre existiu e sempre existirá.

Às vezes me pego pensando como seria o Brasil se as Reformas de Base propostas por Jango tivessem sido aplicadas. Como seria a educação, a ciência, a cultura, a música, o cinema, a televisão, o teatro e a política? Existiria uma polícia militarizada em cada unidade federativa, que encara a população como inimigos de guerra? Existiriam casas sem pessoa e pessoas sem casas? A Justiça seria movida pela indignação seletiva e por supersalários? Eu acho que não. Penso que tudo seria radicalmente diferente e que essa nação seria verdadeiramente democrática. As pessoas teriam consciência cidadã e não teriam tempo para referendar discursos hipócritas e macartistas. Mas esse é um sonho que a elite brasileira só permite que exista na minha cabeça. Ainda agem como se a Bastilha não tivesse caído na França.

Velório de Jango em São Borja-RS.
Lula gostava de lembrar que todos, ricos e pobres, lucraram muito em seu governo. É verdade. Mas a elite lucra muito mais agora, na crise social que ajudou a criar e manter. Não precisa mais de Lula como não precisava mais de Getúlio Vargas em 1945. Uma ruptura se faz necessária para que a elite permaneça elite e nós permaneçamos como o resto da sociedade. As calúnias, difamações e a boataria cumprem um papel fundamental para isso. Precisam jogar a classe trabalhadora ascendida contra quem a fez ascender. Não sei como será o desfecho dessa reprise dessa vez, mas mesmo com mentiras não conseguiram destruir completamente a imagem de Jango junto ao povo. Dez mil participaram de seu velório, que a imprensa foi proibida de noticiar, e meio milhão assistiram ao documentário Jango de Silvio Tendler em 1984. Jango vive! Agora, mais do que nunca.

segunda-feira, 11 de abril de 2016

As lições de American Crime Story

Na última terça-feira, enquanto o Brasil se entorpecia com mais uma final de Big Brother, a América — ou pelo menos parte dela — revivia seus traumas do passado. Naquela ocasião o canal a cabo FX exibiu o último episódio de "The People vs. O.J. Simpson", a primeira temporada da série antológica American Crime Story. Em outubro próximo ocorrerá o 21° aniversário dos eventos retratados naquele episódio, ou seja, a sessão judicial que absolveu o ator e ex-jogador de futebol americano Orenthal James Simpson, acusado de matar sua esposa Nicole Brown e depois o amigo dela, Ronald Goldman, que teria presenciado o crime por acaso. A família Goldman insiste que Ronald morreu tentando salvar a amiga das garras do marido abusivo.

Quando o "julgamento do século" chegou ao desfecho eu estava a um mês de completar 6 anos de idade. O seriado trouxe à tona para minha geração aquele caso criminal e suas implicações morais e, sobretudo, raciais. De um lado, haviam pessoas lutando pela verdade fatual e pela justiça. De outro, pessoas canalizando seu ódio contra uma polícia genocida e uma promotoria que fazia vistas grossas a isso num homem que sequer se identificava como negro. No meio disso tudo, uma nação dividida em barreiras raciais bem definidas — embora sou inclinado a crer que também existia uma barreira entre misóginos e não-misóginos. A violência policial que hoje aparece escancarada em vídeos de celulares à época só chegou ao público devido a este julgamento, que não tinha nada a ver com isso.

Apresentar a questão racial foi uma estratégia da defesa para tirar o foco do júri dos assassinatos. Mas o que isso mudou para os negros? Numa cena crucial do episódio final, o promotor negro Chris Darden indaga o advogado de defesa Johnnie Cochran, também negro: "O que você conquistou para nós? Este caso não é um marco dos direitos civis. A polícia vai continuar nos espancando e matando. Você não mudou nada para os negros de Los Angeles. A não ser, é claro, aquele rico que mora em Brentwood". Por mais simpático que alguém pudesse ser às questões de racismo sistêmico apresentadas pela defesa, é preciso colocar em primeiro plano que dois seres humanos foram mortos e que haviam provas mais do que suficientes para condenar O.J. pelos assassinatos.

A cena emblemática do Oprah Winfrey Show foi
reprisada no episódio.
Que o júri tenha eleito O.J. cause célèbre da violência contra negros na polícia — quando na verdade ele foi tratado a pão-de-ló pelos detetives — foi o que causou a expressão de espanto na cara da apresentadora Oprah Winfrey quando foi informada do veredito. Uma injustiça histórica cometida contra os negros, da qual O.J. sequer foi vítima ele próprio, foi reparada simbolicamente às custas de dois cadáveres. Mais tarde, um julgamento cível confirmou a responsabilidade de O.J. pelas mortes de Nicole e Ronald. O espetáculo jurídico montado pela defesa incluiu manipular uma das cenas do crime visitadas pelo júri — a mansão de O.J. — para mostrar-lhe como mais orgulhoso de suas origens negras do que ele realmente era.

Pode-se culpar a defesa? A defesa vai fazer aquilo que for preciso para libertar seu cliente. Boa parte da pirotecnia jurídica só foi possível graças ao juiz Lance Ito que, em nome de um suposto interesse público, permitiu que o julgamento fosse filmado e transmitido ao vivo na televisão. Era tudo o que a defesa precisava para incitar os negros dos Estados Unidos e, em especial, de Los Angeles a ficar ao lado do irmão O.J., supostamente uma vítima da polícia racista como eles próprios. A maior preocupação das autoridades era que a condenação do ex-jogador de futebol levasse a uma nova destruição de lojas e casas como nos distúrbios ocorridos em 1992 após a absolvição do policial acusado de espancar Rodney King. Caso O.J. tivesse sido condenado e um novo distúrbio tivesse ocorrido, a culpa seria toda de Ito.

No entanto, o veredito foi diferente e Ito foi menos responsabilizado pela absolvição do que os promotores. Um dos pontos positivos do seriado foi justamente recuperar a imagem de Marcia Clark e Chris Darden. No episódio final foi revelado que Clark decidiu entrar para o Escritório da Promotoria devido a um trauma do passado, justamente para ajudar mulheres vítimas da opressão do patriarcado como Nicole; Clark foi abusada aos 17 anos de idade e seu estuprador jamais foi preso. Ela era vista como uma profissional dedicada, sobretudo contra agressores de mulheres. No entanto, por ser uma mulher num universo majoritariamente masculino, enfrentou as mais duras críticas durante o julgamento de O.J. Críticas às quais seus colegas do sexo masculino ficaram imunes.

Seu jeito de falar, de se vestir e até mesmo seu corte de cabelo foram alvo de escrutínio público. Imagine que você está no meio de um julgamento que pode definir sua carreira, tentando fazer justiça em nome de duas famílias, quando é informada pelo seu chefe de que seu ex-marido vendeu fotos de você nua para um tabloide. Marcia Clark teve que passar por isso. Só que há 21 anos atrás, quando ninguém via problema nisso. Slut-shaming sequer era um conceito existente naquela época, em que chamar uma mulher em posição de poder de "vadia" era comum. Descobrindo o até então desconhecido lado humano da promotora, revelado pela série, várias pessoas desculparam-se a ela pelo Twitter. Ellen DeGeneres mostrou as mensagens à verdadeira Clark em seu programa  e ela marejou os olhos.

Espero que a História seja um juiz mais imparcial de nossas
líderes femininas do que nós. Para Marcia Clark foi.
Talvez não seja tarde para pedirmos desculpas para nossas mulheres em posição de poder aqui no Brasil. Levou 21 anos para o grande público americano perceber que foi manipulado por uma farsa jurídico-midiática e que agiu de uma maneira sexista contra uma mulher que não inventou um sistema cheio de falhas. Marcia Clark apenas trabalhava para esse sistema, tentando tirar o melhor dele para os cidadãos que precisavam de sua ajuda. Ela ficou tão enojada quanto qualquer um ao descobrir o nível de racismo existente nas instituições com as quais trabalhava. Hoje as pessoas percebem isso e pedem-lhe desculpas. Se não for possível pedir desculpas a nossas mulheres — e tendo a crer que não será num futuro tão próximo — espero que pelo menos a História seja um juiz mais imparcial de nossas líderes femininas do que nós estamos sendo. Pelo menos para Marcia Clark foi.

quinta-feira, 7 de abril de 2016

Poema: Perturbação

O que está acontecendo?
Tem um ladrão na minha mente

Será que estou enlouquecendo?
Tudo acontece tão de repente

Não consigo me concentrar
Não consigo ter prazer
Nada consegue me fascinar
Quero somente padecer

Persigo a escuridão como se fosse a luz
A um feixe minha sanidade se reduz
Estou te assustando?
Que perturbação!

Até que tô gostando
Dessa inquietação

Não consigo me libertar
Dessa doença mental
Acho que vou gritar
Por uma dose fatal

Perturbação
A escuridão é a luz
Inquietação
A sanidade se reduz

segunda-feira, 4 de abril de 2016

Dilma e a lei

Sim, o impeachment está previsto na Constituição Federal. No artigo 85, para ser mais preciso. Este trecho da Carta Magna trata dos crimes de responsabilidade do presidente da República, os únicos pelos quais o mandatário pode ser cassado pelo Congresso (crimes comuns devem ser julgados pelo Supremo Tribunal Federal). Porém, os deputados constituintes determinaram que os crimes de responsabilidade que justificam a destituição do presidente deveriam ser definidos por uma lei especial, o que simplesmente não existe no nosso ordenamento jurídico. Nos últimos 28 anos, os membros do nosso eficientíssimo Congresso Nacional não criaram tal lei, sendo que o processo de impeachment atual contra a presidenta Dilma Rousseff deverá ser regido, em parte, pela lei federal N° 1.079 de 1950. "Como o impeachment não é cogitado com frequência,  o Congresso Nacional não se preocupou em adaptar o procedimento previsto na Lei n. 1.079/50 aos novos ditames constitucionais", argumentou o PCdoB em pedido ao STF para anular a eleição secreta para a escolha dos membros da comissão do impeachment.

Uma oportunidade para regulamentar o processo de impeachment veio em 1992, após o processo que levou à renúncia de Fernando Collor, mas a Câmara dos Deputados se limitou a promover algumas alterações em seu regimento, esquecendo-se de sua obrigação constitucional de criar regras para o processo de impeachment. Apesar dos 38 anos que os separam, tanto a lei 1.079/50 quanto o artigo 85 da Constituição definem como crimes de responsabilidade os atos do presidente que atentem contra a Constituição e, em especial, a existência da União, o livre exercício dos demais poderes federais e estaduais, o exercício dos direitos individuais e político-sociais, a segurança interna do país, a probidade administrativa, a lei orçamentária e o cumprimento das leis e das decisões judiciais. Nesse aspecto, a redação dos textos é praticamente idêntica. A única diferença é que a lei 1.079/50 também define como crime de responsabilidade o atentado à guarda e ao emprego do dinheiro público. Justamente o item que mais caberia na tese de que pedalada fiscal é crime não pôde ser utilizado porque não consta da Carta Magna.

Assim sendo, os formuladores do pedido de impeachment — dentre os quais estão um ex-petista ressentido com Lula pelo fato deste não ter-lhe convidado para ser Ministro da Justiça — argumentam que Dilma teria atentado contra a lei orçamentária. Citam os incisos 6, 7, 8 e 9 do artigo 10 da lei 1.079/50. Nestes incisos está escrito que o governo não pode realizar operação de crédito com outros órgãos da Administração Pública sem base na lei orçamentária. Os autores do pedido de impeachment parecem desconhecer a definição de operação de crédito, que é, segundo o site do Ministério da Fazenda, o "levantamento de empréstimo pelas entidades da administração pública, com o objetivo de financiar seus projetos e/ou atividades, podendo ser interna ou externa". O que ocorreu no caso das pedaladas fiscais não foi um empréstimo: o governo atrasou o repasse de verbas públicas aos bancos estatais. O governo não possuía dinheiro em caixa para transferir os recursos do Bolsa Família à Caixa, daí o banco pagou o benefício e recebeu o montante referente ao programa mais tarde. A grosso modo, foi isso que ocorreu.

Em momento algum o governo emprestou dinheiro à Caixa. Se o Tribunal de Contas da União — numa manobra suspeita, que parece tomada sob medida para os defensores do impeachment — mudou sua jurisprudência em 2015, depois de décadas aceitando a prática das pedaladas, então essa nova jurisprudência só vale a partir do ano fiscal de 2016. Uma vez que o impeachment provoca uma ruptura muito forte na instituição da presidência, os crimes de responsabilidades não podem ter interpretação ampla. Conforme escrevem Tavares e Prado, "os crimes de responsabilidade não são infrações administrativas abertas que possam ser preenchidas por obra da interpretação do agente sancionador". Por sua vez, Victor Cezar Rodrigues defende que "se a conduta imputada não corresponder a alguma das hipóteses previstas nesses artigos [da lei 1.079/50], seja em seus elementos objetivos ou subjetivos, não há que se falar em crime de responsabilidade". Só uma interpretação ampla igualaria dívida a empréstimo. Conforme escreve Ricardo Lodi, "um inadimplemento contratual não sofre as mesmas sanções" que uma operação de crédito, definida pelo artigo 3° da Resolução 43/01 do Senado Federal.

Dilma é uma mulher tão correta que, de todos os crimes de responsabilidade previstos na lei 1.079/59, só conseguiram pegá-la utilizando uma interpretação torta do artigo 10. Interessante contrastar o artigo 7° à fala do procurador da Lava Jato, segundo o qual a presidenta jamais interferiu nas investigações. Este sim é um crime de responsabilidade previsto pela lei, que governadores praticam a direito e a torto por todo o país. Interessante notar também que os próprios conspiradores poderiam ser cassados com base na lei que desejam usar contra Dilma. Gilmar Mendes, por exemplo, quando se reúne com políticos da oposição, fere o artigo 39, inciso 3, que determina que os ministros do Supremo Tribunal Federal cometem crime de responsabilidade quando exercem atividade político-partidária. Para tentar justificar a cassação de uma presidente sobre a qual não pesa nenhuma acusação, valem-se de um suposto atentado à lei orçamentária, mas fundamentam-se na lei de responsabilidade fiscal, a qual sequer é citada no artigo 85 da Constituição. Violar a lei de responsabilidade não é o mesmo que violar a lei orçamentária.

A lei de responsabilidade fiscal não é citada na lei 1.079/50 nem no artigo 85 da Constituição Federal. Se desejam incluí-la, os deputados oposicionistas deveriam fazê-lo pelo meio legal: aprovar uma nova lei do impeachment, já que a de 1950 não agrada-lhes. Ao usar a lei de responsabilidade fiscal para condenar um crime contra a lei orçamentária, os deputados correm o risco de desvirtuar todo o ordenamento jurídico do país. E vão fazê-lo pelo simples fato de que a popularidade da presidenta, para a qual muitos deles fizeram campanha no passado, está baixa. Como já afirmou várias vezes o presidenciável pedetista Ciro Gomes, partidos e políticos são rechaçados nas urnas. O impeachment não é — ou pelo menos não deveria ser — um instrumento político. Trata-se de um instrumento jurídico a ser utilizado apenas nos casos previstos pela lei. E, em momento algum o texto constitucional ou a lei 1.079/50 fala em pedalada fiscal. Quando Dilma e seu Ministro da Fazenda fizeram as pedaladas fiscais sequer havia jurisprudência contra elas. Por isso, o impeachment, embora previsto em lei, é, sim, um golpe. Este impeachment contra esta presidenta é um golpe.