quarta-feira, 20 de abril de 2016

Bancada cristã: me incluam fora dessa

Parte de mim sente-se na obrigação de pedir desculpas aos cidadãos brasileiros pelo episódio grotesco promovido no último domingo pela bancada cristã na Câmara dos Deputados durante a votação do pedido de impeachment da presidenta Dilma Rousseff. Teve deputado dito "cristão" exaltando um notório torturador do regime militar, teve uma overdose da utilização do santo nome em vão e teve até mesmo deputado católico negando a Confederação Nacional dos Bispos do Brasil por esta ter se posicionado ao lado de nossa frágil democracia. Quero muito pedir desculpas, mas a verdade é que eu não tenho absolutamente nada a ver com aquilo. Minha igreja não deturpa o Evangelho para tornar seus líderes ricos e influentes politicamente. Justo ao contrário, ela prega o Evangelho social de Jesus Cristo, acolhendo a todos e se posicionando a favor das liberdades democráticas do povo brasileiro. Minha igreja está do lado do povo.

Num artigo recente para o Huffington Post, a professora de inglês Mary Ann Ware enumerou dez estereótipos comuns sobre os cristãos, que as denominações neopentecostais tanto ajudam a propagar. Muitas vezes sou vítimas desses estereótipos sem comungar com o discurso dessas igrejas. Graças a incendiários de orixás e espancadores de crianças candomblecistas, os não-cristãos têm uma imagem muito negativa de nós. Se pudesse, eu mesmo proibia essas pessoas de usarem o rótulo "cristão". Elas sofreram lavagem cerebral e foram levadas a crer que só o caminho delas leva a Deus. No entanto, nem todo mundo que escolhe ser cristão tem a mente fraca. Eu, por exemplo, escolhi minha própria igreja e meu QI é superior ao de 70% da população mundial. Não nego a ciência e a evolução das espécies e jamais compraria a "fragrância de Jesus" que deixa televangelistas podres de ricos. Também nunca votaria num candidato de extrema-direita porque o pastor mandou.

Assim como Dilma Rousseff,
Jesus também foi torturado.
Não faço do meu cristianismo uma questão de ativismo. Sim, o que Jesus pregou tem muito a ver com a atualidade, em especial com as desigualdades sociais — e o Papa Francisco expõe isso de maneira brilhante. No entanto, usar o nome de Cristo para defender seu ponto de vista é admitir que suas ideias são tão frágeis que não se sustentam sem o manto da religião. O debate político, que deveria pertencer a todos os cidadãos, vira uma questão exclusiva de quem crê em Deus. E logo bandidos que não têm nada a ver com a mensagem de Cristo se escondem sobre esse manto. Duvido muito que o nazareno, vítima de tortura dos romanos, faria campanha para o mais novo garoto-propaganda do Partido Social Cristão (PSC), Jair Bolsonaro, que saudou o torturador de Dilma, Carlos Alberto Brilhante Ustra, ao falar ao microfone no último domingo. Um cristão de verdade ama seus inimigos e não se vale do episódio mais brutal de sua vida para humilhá-lo.

O que se viu na Câmara dos Deputados no domingo foi um escárnio aos valores cristãos. Foi, nas palavras do deputado Chico Lopes, um "encontro de bons maridos e bons pais". Seres humanos quase perfeitos diante de uma Dilma Rousseff imperfeita. Conforme escreve Mary Ann, "a ideia principal do cristianismo é que Deus estende a nós sua graça e seu perdão através de seu filho". Ora, seres perfeitos, pais e maridos exemplares, não precisam de perdão, logo não são cristãos. Felizmente a máscara da perfeição da bancada cristã não demorou a cair. Um dia após a votação o marido da deputada Raquel Muniz — eleita pelo PSC e hoje no Partido Social Democrático (PSD) — foi preso pelos crimes de estelionato, prevaricação, peculato, falsidade ideológica e dispensa de licitação pública. Seria retribuição divina por tantas violações ao 3° mandamento (2° na tradição católica) num curto período de tempo?

É fácil perder a paciência com quem se esconde sob o manto
religioso para agredir quem tem outra concepção de mundo.
A situação deplorável do Congresso se dá porque muitos acreditam que ser cristão é um atestado de bons antecedentes criminais. Me recuso a acreditar em qualquer candidato (e cidadão) só porque ele diz ser cristão. Saber citar versos bíblicos não significa nada. Que lindo você saber que o Levítico condena os homossexuais, mas você sabia que o próprio Jesus Cristo o violou? Jesus foi enviado a este mundo para reformar a lei judaica e em sua comitiva aceitava a participação de ex-prostitutas e ladrões. Enquanto Jair Messias Bolsonaro gritava "queima-rosca" para Jean Wyllys enquanto este votava, o outro Messias disse a uma turba de homens prestes a linchar uma prostituta que eles não poderiam julgá-la porque não eram Deus e também tinham seus muitos pecados. Noutra ocasião, disse "não julgueis para não serdes julgados", lembrando que somos medidos com a mesma régua que usamos para medir os outros. E foi assim que um empurrão deu origem a uma cusparada.

Por fim, a obsessão dos cristãos — fora e dentro do Congresso — com questões de ordem "moral" é fascinante. Como se existisse uma única "moral" que deveria se aplicar a todos os 200 milhões de brasileiros, muitos dos quais nem são cristãos. Dentro do próprio cristianismo existem várias morais. Apesar do culto debochado de domingo na Câmara e da cruz pendurada no plenário do Supremo Tribunal Federal, o Estado brasileiro ainda é laico e impor um único conjunto de valores morais à totalidade da população é inconstitucional — se bem que derrubar presidente sem crime de responsabilidade também é. Nem o próprio Jesus andava só com aqueles que possuíam os mesmos valores que ele. Como ser iluminado que era, ele sabia que é na diferença que crescemos. Viver numa bolha contraria os ensinamentos de Cristo. Mas parece que isso é o de menos para deputados que violam muitos senão quase todos mandamentos enquanto se escondem sob legendas ditas cristãs.

Sim, sou cristão, mas minha turma é outra.
Por mais que o escárnio religioso de domingo me entristeça, não tenho porque pedir desculpas por aquilo. Fui criado na Igreja Católica e ano passado decidi abraçar a fé anglicana. Sequer conheço o conjunto de crenças dos evangélicos, a não ser aquilo que a mídia apresenta. O censo do IBGE me classifica como um "evangélico", embora comparar a Igreja Anglicana às principais denominações evangélicas do Brasil equivale a comparar o Partido da Causa Operária (PCO) ao Democratas. Temos outra visão de mundo, outra concepção do que significa ser cristão. A fé deles foi individualizada, afastada do contexto social pelo neoliberalismo, e isso está nítido nas declarações dos membros da bancada dita cristã ao votar pelo afastamento de Dilma Rousseff — "pela minha família", "minha esposa", "meus filhos", "meus pais", etc. Minha fé, por sua vez, não é individualista, portanto não me exijam um pedido de desculpas; sou cristão, mas não sou responsável pela bancada cristã e estou tão chocado quanto um não-cristão. 

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