domingo, 23 de abril de 2017

A dosagem do controle nos relacionamentos

A melhor atuação de um ator é sempre aquela em que dá vida a um personagem próximo de sua realidade, pois sua interpretação sai o mais natural possível. Joan Crawford basicamente interpretou a si mesma em A Dominadora (1950), onde dá vida a Harriet Craig, – título original do filme –, uma mulher obcecada por limpeza e organização que, para evitar brigas, precisa que as coisas sejam feitas do seu jeito. Em determinada cena do filme a governanta da Sra. Harriet diz à cozinheira: "se ela pudesse, embrulharia a casa toda em celofane". De fato, os móveis de Crawford eram embrulhados em celofane, tamanha sua obsessão em mantê-los limpos. Mas as semelhanças entre interpretador e interpretado não terminam por aí: tanto Harriet Craig quanto Joan Crawford nasceram na miséria, foram abandonadas por seus pais na infância, trabalharam em lavanderias e abandonaram a escola. E, apesar disso, ambas encontraram êxito profissional.

A arte imita a vida: "Se ela pudesse, embrulharia a
casa toda em celofane". 
Segundo o diretor Vincent Sherman, em entrevista para o episódio sobre Crawford da série documental The Hollywood Greats da BBC, ele incorporou muito da personalidade da atriz no filme sem que ela percebesse. Mas eu acho que ela percebeu sim. Tanto que, segundo o Internet Movie Database, baseou-se em sua própria experiência pessoal para entregar a cena final do filme, na qual Harriet Craig explica porque se tornou uma mulher controladora que duvida das intenções dos homens que se aproximam dela. O final deveria ter servido de advertência para a atriz. A protagonista quer controlar tanto o mundo ao seu redor que acaba afugentando as pessoas mais próximas de si. O mesmo ocorreu com Crawford, embora não da noite pro dia. Ao longo de sua vida, ela afastou companheiros, filhos e até a governanta, que mais tarde teria dito que decidiu voltar para sua Alemanha natal porque havia se cansado de se desviar de coisas jogadas em sua direção.

Ao que tudo indica, Crawford gostava que gostassem dela. Mantinha uma relação pessoal com seus fãs e regularmente realizava atos de caridade para estranhos. No entanto, isso deveria ocorrer nos termos dela. Eu creio que não podemos ser seletivos em relação à afeição que recebemos. Temos de aceitar o carinho e o amor que recebemos da forma que o recebemos. Mas não a julgo. O patriarcado sempre impôs regras bem rígidas para os relacionamentos. Mas ninguém – nem o homem e nem a mulher – tem que controlar os rumos de um relacionamento. Só que ainda hoje essa é uma opinião impopular e, para não sermos dominados, acabamos nos tornando dominadores nós mesmos. Como bem diz Harriet Craig, a dominação é um mecanismo de defesa contra o amor. Tememos que o amor nos deixe de quatro e que nos anulemos para satisfazer as vontades do outro. É preciso dosar a vontade de controlar e de ser controlado nos relacionamentos.

Quando queremos controlar a vida de todos ao nosso redor,
acaba sobrando só a nossa mesmo para controlar.
Joan Crawford gostava que as coisas fossem feitas do seu jeito – e não do jeito dos homens. Afinal de contas, ela não precisava (e nunca precisou) de nenhum deles para se sustentar. É algo que incomoda nossa realidade machista e é claro que ao transpor para a tela a mulher que age dessa maneira, transformariam-na numa "bitch", num exemplo a não ser seguido. Mas Crawford e Craig são apenas casos extremos. Me identifiquei muito com a filosofia de vida de Harriet Craig e continuarei me identificando com ela. O que me assusta, no entanto, é o extremismo. Se, por um lado, identifico e admiro Crawford por ter sido uma mulher pioneira, que tomou o controle de sua vida para si, por outro lado me assusta a intensidade com a qual ela o fez. Essa é a parte de Crawford e Craig com a qual tenho medo de me identificar. Controlar a própria vida é bom, mas fazê-lo em excesso nos torna insuportáveis e nos afasta do convívio humano.