sexta-feira, 31 de julho de 2015

Graça Maravilhosa

Estátua de Wilberforce na Abadia
de Westminster, próxima à de Pitt.
O título desse post é o que deveria ser o título em português de Jornada Pela Liberdade (Amazing Grace, 2006, Michael Apted). O filme em questão mostra a trajetória do deputado britânico William Wilberforce (Ioan Gruffudd), que lutou durante duas décadas pela aprovação do projeto de lei que punha fim ao tráfico negreiro nos territórios do Reino Unido. Ontem, as províncias da Comunhão Anglicana celebraram sua memória e a Organização das Nações Unidas comemorou o Dia Internacional pelo Fim do Tráfico de Pessoas. O mentor de Wilberforce na luta contra a escravidão foi o reverendo anglicano John Newton, que, antes de seguir a carreira religiosa, foi capitão de um navio negreiro. Newton dizia que era acompanhado por 20.000 fantasmas, ou seja, cada um dos africanos que transportou para o continente americano. Quando encontrou a Graça Maravilhosa, abandonou seu trabalho inglório e dedicou-se a denunciar a escravidão. Um dos meios encontrados foi a música. Sua composição "Amazing Grace" é, hoje, um dos ícones da comunidade negra que ainda luta por direitos iguais no continente americano.

Wilberforce é venerado pelos anglicanos como Testemunha Profética. A Comunhão Anglicana não possui um mecanismo formal de canonização de membros ilustres de sua fé, e evita chamar de "santos" todos aqueles que são venerados desde a separação da Igreja da Inglaterra da Igreja de Roma. Testemunhas Proféticas são todos aqueles que vieram a este mundo profetizar a mensagem de Jesus Cristo através de ações que exemplificam o modo de vida cristão. Wilberforce, como todo verdadeiro cristão, amava indiscriminadamente todas as criaturas de Deus, em especial aquelas que eram as mais oprimidas. Além do movimento abolicionista, foi também um dos pioneiros do movimento pelo fim dos maus tratos aos animais na Inglaterra. Na década de 1780, ainda um jovem deputado, defendeu uma solução pacífica para a Revolução Americana, o que lhe custou a oposição de poderosos deputados conservadores como o Duque de Clarence, filho do rei George III, e Banastre Tarleton, conservador que, interpretado pelo ator irlandês Ciarán Hinds no filme, lembra em muitos aspectos o atual enfant terrible  do Congresso brasileiro Eduardo Cunha.

Assim como Cunha, os deputados que colocavam travas ao desenvolvimento da Inglaterra em questões de respeito às liberdades individuais, eram sustentados politicamente por grandes empresas, como a Companhia das Índias Ocidentais, que monopolizava o comércio de açúcar e almas humanas no Atlântico. O que só reforça a discussão que existe hoje no Brasil sobre a importância de afastarmos os poderes econômicos dos poderes políticos. Mas, voltando à Inglaterra do final do século XVIII, é interessante notar como a luta de Wilberforce pela liberdade dos negros coincide com sua renovação espiritual. "Eu não encontrei Deus, Ele me encontrou", diz no filme. E não foi por acaso. Deus encontrou Wilberforce para torná-lo instrumento de libertação dos negros. Não fica evidente no filme porque ele possuía um carinho especial pelos oprimidos, mas eu imagino que seja uma combinação do fato dele mesmo ser discriminado por não ser da nobreza (era burguês) com sua espiritualidade, moldada pelo reverendo Newton (interpretado brilhantemente pelo veterano Albert Finney) e reencontrada na juventude, quando estava à busca de um sentido para sua vida.

O principal motivo pelo qual as pessoas se opunham ao fim do tráfico negreiro era porque elas não conheciam as torturas pelas quais os negros passavam. E, assim como se convencionou chamar os beneficiários do Bolsa Família de "vagabundos", os deputados conservadores acusavam os escravos negros da Jamaica - que jamais tinham visto na vida - de terem condições de vida melhores do que os operários ingleses. Esse, penso eu, é o principal motivo pelo qual as pessoas se mostram favoráveis a medidas potencialmente catastróficas e que punem aqueles que já são punidos pela vida, como a redução da maioridade penal, que irá afetar justamente os descendentes de escravos. Mas isso é tema para outro post. No entanto, desconhecer os efeitos de uma medida não a torna menos nociva e tampouco seus defensores menos cúmplices das injustiças que ela causa. É interessante também notar como o medo do desconhecido - no caso a agitação revolucionária nos Estados Unidos e na França - leva as pessoas a tomarem uma atitude conservadora. Não foi (e ainda é) o medo da Revolução Cubana que levou (e ainda leva) várias pessoas a tomarem posições ultraconservadoras no debate político brasileiro?

Mas as pessoas - e a política - não podem ser movidas pelo medo para sempre. Passada as Revoluções no exterior e após a vitória da Inglaterra nas Guerras Napoleônicas, Wilberforce encontra novamente campo para expôr suas ideias progressistas. Mas o momento ainda exigia certa cautela. Primeiro foi preciso solapar financeiramente as empresas que lucravam com o tráfico negreiro numa jogada política disfarçada de nacionalismo. Com o poder econômico reduzido, elas não poderiam mais comprar deputados e exercer influência sobre o poder político. Foi essencial para essa jogada o fato de Wilberforce ser amigo de longa data do então primeiro-ministro William Pitt (Benedict Cumberbatch). O jovem estadista endossava o deputado abolicionista e até mesmo lhe apresentou às principais lideranças políticas do movimento, com destaque para os Quakers (cujo engajamento político em causas progressistas é notável, sendo que há pouco tempo os religiosos desse grupo eram investigados pela CIA como espiões comunistas). Pitt ainda detém o recorde de primeiro-ministro mais jovem do Reino Unido, assumindo o cargo com 24 anos de idade. É óbvio que a renovação política só foi e é possível com a renovação geracional.

Na primeira vez em que Wilberforce apresentou seu projeto de lei, conseguiu 16 votos favoráveis. Da última vez em que apresentou, apenas 16 deputados votaram contra. Como um colega lhe afirma, ao parabenizá-lo pela vitória, Wilberforce pôde ir para casa e dormir tranquilamente, sabendo que os britânicos não poderiam mais apostar negros em jogos de azar - como o Duque de Clarence faz no início do filme - e nem seriam mais marcados a ferro, como o ex-escravo Equiano relata, para que pudessem saber que não pertenciam mais a Deus e sim a um outro homem. Wilberforce lutou para garantir que todas as criaturas pertencessem ao Criador. Porque o que mais lhe importava na vida era a paixão que ele tinha por todas as marcas da criação divina. Àquele que se posiciona perante uma injustiça e defende que ela cesse, a Graça Maravilhosa pertence. E nem os séculos poderão apagar seu legado.

quinta-feira, 30 de julho de 2015

Teste de fé

Há algumas semanas, como de costume fui na missa com a minha mãe na Igreja Matriz de Campinas. Um pouco antes da Páscoa, redescobri minha fé em Jesus Cristo, o rabino judeu revolucionário de Israel do século I, através de um texto de Frank Schaeffer publicado no AlterNet. Desde então eu estava frequentando à missa duas vezes por semana. Mas, como de costume, nunca me sentia verdadeiramente em casa num templo da Igreja Católica. Sentia-me observado, julgado e vigiado. Eu frequentar à missa era mais uma questão de tradição do que de escolha pessoal.

Paróquia São Felipe.
No final de junho, senti-me desconvidado a continuar participando daquela comunidade dita cristã. Durante seu sermão, o padre começou a fazer campanha contra a "ideologia de gênero" nas escolas e começou a atacar o feminismo e a homo-transsexualidade. Pode-se pensar o que quiser do feminismo, mas a sexualidade humana não é uma escolha. Não nascemos militantes; nascemos gays, lésbicas, bissexuais e transgêneros. O interessante é que, poucos minutos antes, ele falava da importância do perdão para a fé cristã. Não pratique o que se prega parece ser a ordem do dia no Vaticano, cujo líder, embora melhor do que o anterior, tem a coragem de, ao mesmo tempo, denunciar o aumento da pobreza e dizer a filipinos pobres que não usem contracepção. Não consegui continuar frequentando aquele templo farisaico e hipócrita, que prega o amor e, cinco minutos depois, a exclusão social de grupos já historicamente oprimidos.

Fui atrás de outras alternativas. De início descartei o evangelicalismo (eu sei que, embora não deem ibope, existem igrejas evangélicas progressistas, mas o estilo de culto delas não me agrada muito) e descartei também as vertentes protestantes que rejeitam a veneração à Virgem Maria e aos apóstolos. Sobrou-me, então, o luteranismo e o anglicanismo. Desses, pareceu-me que o anglicanismo (ou episcopalismo, como é chamado nos States) era o mais aberto não só à diversidade humana mas como às causas que eu defendo. E em todo o mundo. Na Inglaterra, por exemplo, os anglo-católicos foram, em boa parte, responsáveis pelo sucesso eleitoral do então socialista Partido Trabalhista. Mandei um e-mail à sacerdotisa da paróquia goianiense e ela me convidou ao próximo culto que realizaria.

O culto em questão foi realizado no último dia 12. É muito semelhante à missa católica, só que sem formalismos desnecessários. No momento em que se deseja a paz de Cristo aos demais fiéis, por exemplo, literalmente todo mundo vem te abraçar. Inclusive o bispo diocesano, que estava em Goiânia por ocasião da comemoração dos trinta anos da ordenação de mulheres na Igreja Episcopal Anglicana do Brasil. Em diversos momentos a palavra é aberta à comunidade. Havia, inclusive, uma pastora luterana que foi proferir algumas palavras sobre a importância de se incluir as mulheres na estrutura eclesiástica das comunidades cristãs. Os sacerdotes católicos romanos, por outro lado, adotam postura de autoridade; são frios e distantes dos fiéis. Jamais abrem a palavra para a comunidade, em especial líderes de outras religiões.

No final do culto, fui convidado pela reverenda a almoçar com os membros da paróquia. Nessa hora, ela fez questão de me reafirmar que a comunidade dela é aberta para todos. Inclusive chamou-me bastante a atenção o número de reverendas presentes no culto. Jamais imaginaria que veria uma mulher proferir um sermão. Ao reorientar-me para uma comunidade com seu verdadeiro espírito, Jesus me mostrou que a Igreja Católica pode até ter me abandonado, mas ele não. Percebo que tudo não se passou de um teste de fé. E, dessa vez, descontei minha insatisfação em quem realmente merece e não em Cristo, que sempre esteve do meu lado me protegendo, acolhendo e amando por quem eu sou. Não carrego mais uma cruz por ser quem sou. Rezo sem ser atacado. Encontrei meu lar.

Os cristãos conservadores teriam odiado Jesus

Ao mesmo tempo em que dizem professar Sua palavra, os fundamentalistas estão se esquecendo da mensagem mais importante de Jesus



Jesus jamais poderia ser um pastor de uma igreja evangélica e tampouco um bispo da Igreja Católica. Os evangélicos e católicos conservadores são bem sucedidos em distinguir a "verdade" deles e os erros dos demais. Jesus, por outro lado, detonou uma bomba-relógio de empatia que extingue essa diferença.

A bomba-relógio de empatia de Jesus explode toda vez que um ex-evangélico coloca o amor acima do que a Bíblia diz. Ela explode toda vez que o Papa Francismo faz da inclusão o seu dogma. Ela explode sempre que um casal gay é acolhido numa igreja. A bomba-relógio de Jesus explode sempre que os ateus seguem mais os passos Dele do que os cristãos.

Vejam só: A Dinamarca sem Deus oferece quatro semanas de licença-maternidade antes do parto e mais quatorze após. Os pais de recém-nascidos são acompanhados por uma enfermeira pediátrica, que lhes visita em casa. No Sul dos EUA, "pró-vida" e "da família", líderes políticos conservadores cortam programas designados para ajudar as mulheres e seus filhos enquanto criam uma mitologia justificadora sobre "ensinar a pescar" ao invés de "dar o peixe".

Na "América temente a Deus", os pobres são os "parasitas" e não mais os "desafortunados", e muitos evangélicos conservadores tomam o lado dos fariseus da atualidade, atacando os pobres em nome da Bíblia.

Jesus não toleraria os absurdos proclamados em seu nome.

Então quem está seguindo Jesus?

Confrontados pelo culto bíblico chamado evangelicalismo, temos uma escolha: seguir Jesus ou seguir o culto a um livro. Se Jesus é quem os evangélicos e os católicos afirmam que Ele é, então a escolha é clara. Precisamos ler o livro - inclusive o Novo Testamento - como Ele leu. E Jesus não gostava da "Bíblia" de Seu tempo. 

Confrontados pelos bispos que protegem os dogmas e a tradição contra a adoção, pelo Papa Francisco, da empatia pelo "outro" temos uma escolha: seguir Jesus ou proteger a instituição.

Toda vez que Jesus mencionava o Seu equivalente da tradição bíblica, a Torá, ele dizia algo como "as escrituras dizem isso, mas eu digo...". Jesus enfraqueceu as escrituras e as tradições religiosas a favor da empatia. Toda vez que Jesus enfraquecia as escrituras era para ficar do lado de quem sofria. Toda vez que uma ex-evangélica se torna ateia para desenvolver sua empatia, ela se aproxima de Jesus. Toda vez que o Papa Francisco fica do lado daqueles que a Igreja oprime, ele se aproxima de Jesus. Toda vez que um católico conservador tenta impedir o Papa de trazer mudanças para a Igreja, ele se aproxima daqueles que mataram Jesus.

Um leproso se aproximou de Jesus e disse "Senhor, se puder, me purifique". Se Jesus tivesse seguido o judaísmo tradicional, teria dito "Cure-se" e teria virado as costas. Ao invés disso, ele ergueu a mão e tocou no leproso, dizendo "Purifique-se", mesmo estando em desacordo com as regras do Levítico. Dois capítulos ensinam que qualquer um que tocar numa pessoa com lepra estará contaminado.

Seguindo as noções dos evangélicos e católicos fundamentalistas, Jesus era um humanista quebrador de regras que não foi salvo. Um bispo conservador teria Lhe negado os sacramentos. A revista "Christian Today" teria feito uma reportagem contra Ele, pedido Sua excomunhão, Seu banimento e rotularia-O de "traidor do cristianismo".

A mensagem de vida de Jesus é de uma intervenção e da aceitação da empatia. Considerem essa história do livro de Mateus: "Uma mulher que padecia de hemorragias havia doze anos aproximou-se por trás e tocou na franja de sua veste. Ela dizia consigo: "Se eu conseguir somente tocar em sua veste, serei." Jesus, voltando-se e vendo-a, disse: "Coragem, filha. A tua fé te salvou." E desde aquela hora, a mulher ficou salva."

Jesus reconheceu uma mulher sangrando tocando-O como um sinal de fé. Ao cumprimentá-la, ao invés de repreendê-la, Jesus ignorou mais uma de Suas escrituras: "Quando uma mulher é atingida por uma hemorragia durante vários dias fora do seu período [menstruação], ou a hemorragia se prolongar além do seu período, sua impureza dura enquanto durar a hemorragia... Toda cama em que ela se deitar é como a cama do seu período; e todo objeto em que ela se sentar é impuro... Todo aquele que os tocar torna-se impuro" (Levítico 15:25).

As atitudes de Jesus, bizarras para o século I, foi além de acariciar leprosos e aceitar o toque de uma mulher sangrando. O acolhimento de uma mulher de uma tribo inimiga numa cultura onde o pertencimento tribal era primordial irritou tanto seus seguidores quanto seus inimigos. Suas atitudes para o "outro" eram tão incompreensíveis como se ele tivesse proferido "E=mc2 é a equação da equivalência entre massa e energia". Até a mulher samaritana no poço sabia que suas ações eram chocantes. Quando Jesus conversou com ela, ela disse: "Tu, um judeu, tu me pedes de beber a mim, uma mulher samaritana?" (João 4:19).

Jesus respondeu atacando a preeminência da religião, da tradição, dos dogma e das identidades de grupo, oferecendo uma maneira inteiramente nova de olhar para a espiritualidade, enfatizando a superioridade da dignidade humana acima da nação, do Estado, do sexo ou da religião:

"Mulher," Jesus respondeu: "Acredita-me, vem a hora em que nem sobre esta montanha, nem em Jerusalém tu vais adorar o Pai. Vós samaritanos adorais o que não conheceis; nós adoramos o que conhecemos, pois a salvação vem dos judeus. Mas vem a hora, e é agora, na qual os verdadeiros adoradores adorarão o Pai em espírito e em verdade; tais são, com efeito, os adoradores que o Pai procura. Deus é espírito, e os seus adoradores o devem adorar em espírito e em verdade" (João 4: 19-24).

"Adorar em espírito e em verdade" não é escritural, sequer a "salvação" segue as ideias corretas da tradição. Imagina-se que as pessoas que chamam Jesus de "Filho de Deus" também rejeitariam a veneração do livro em que ele está preso e o dogma da Igreja que o crucifica de novo e de novo toda vez que um homem gay ou um casal divorciado não pode receber os sacramentos.

Os evangélicos lutam para enquadrar Jesus num livro, e não o contrário. E os bispos conservadores têm se aliado com a ala dos neoconservadores americanos em sua Igreja não contra o justo Papa Francisco, mas sim contra a emancipação da lógica da bomba-relógio de empatia de Jesus. Se Jesus não é a "lente" com a qual os evangélicos e católicos leem a Bíblia e suas tradições, então apesar do que eles digam, eles não acreditam verdadeiramente que Jesus é o filho de Deus.

quarta-feira, 29 de julho de 2015

"É dever do artista refletir o espírito do tempo em que ele vive"

A autora da frase que serve de título para esse texto é a cantora e compositora estadunidense Nina Simone. Está em cartaz no Netflix um documentário sobre sua brilhante e turbulenta vida, What Happened, Miss Simone? Como toda boa obra audiovisual, deixou minha mente a mil quando terminei de assistir. Vou explicar porque, mas primeiro, caso você não queira spoilers aconselho que pare de ler o texto aqui. Eunice Waymon (nome verdadeiro da cantora) começou a tocar piano ainda na infância, nos cultos pentecostais que sua família frequentava. Ao ser vista por uma senhora branca, professora de piano, essa resolveu ensinar-lhe os clássicos da música. Ela queria que Eunice se tornasse a primeira pianista clássica "de cor" dos Estados Unidos. No entanto, seu sonho foi destruído pela segregação racial. E isso, aliado à repressão religiosa, transformou Eunice em Nina Simone.

Inicialmente, Nina Simone (o nome artístico veio do espanhol niña e da atriz francesa Simone Signoret) cantava baladas românticas, influenciada pelo marido, um ex-chefe de polícia controlador. Todos os aspectos da vida da cantora eram controlados pelo marido, que a mantinha subjugada através de surras e até mesmo agressão sexual caso ela não o obedecesse. No início dos anos 1960, no entanto, simultaneamente à ascensão de Nina ao estrelato, os Estados Unidos vivia o início do Movimento pelos Direitos Civis. Nina, que negou suas raízes desde o início, sentiu-se acolhida por pessoas como Malcolm X (de quem era vizinha), Dr. Martin Luther King e tantos outros ativistas e artistas que refletiam o zeitgeist daquele momento. Presa a um casamento miserável, ela enfim achou uma maneira de ser feliz. Escreveu "Mississippi Goddam" e se tornou cada vez mais uma cantora de protesto.


Só que isso lhe custou o sucesso comercial. Ao expressar seu verdadeiro espírito - livre - foi acusada de ser radical demais. Logo ela, que foi oprimida a vida toda: pela religião, por ser negra no Sul racista, por não poder se expressar abertamente sobre o que pensava sobre ser negra nos Estados Unidos e, principalmente, por ser oprimida e abusada pelo marido. É como aquele aforismo atribuído ao escritor alemão Bertolt Brecht: "Falam que o rio que tudo arrasta é violento, mas nada dizem das margens que o oprimem". A impressão que tive de Nina é que ela nasceu no tempo errado, no lugar errado e com a cor de pele errada. Tivesse nascido sob outras circunstâncias, teria conseguido a felicidade que apenas a liberdade poderia propiciar a um espírito livre como ela.

O estopim, para a cantora, foi quando assassinaram o Dr. Martin Luther King. Nina deixou a aliança na mesa de centro e partiu para a Libéria, país fundado no século XIX como colônia para escravos libertos do sul dos Estados Unidos. Lá, finalmente pôde experimentar a felicidade que um espírito livre só consegue ao ser desamarrar das correntes que a sociedade nos impõe. Entendo perfeitamente isso. Assim como Nina, sinto que não nasci no lugar ou no tempo certo. A explicação que os meus amigos espíritas me dão é que eu sou um espírito evoluído demais. Voltando ao documentário, Nina precisava de dinheiro para sobreviver, como qualquer um que vive nesse sistema nefasto chamado capitalismo.

Foi em Paris que ela tentou retomar a carreira. Sem controle emocional e sem empresário, ela se vê no fundo do poço, fazendo apresentações em verdadeiras espeluncas. Com a ajuda de amigos que moravam na cidade, ela consegue se reerguer. Muda-se para a Holanda e, ao ser visitada por um médico, é diagnosticada com transtorno bipolar. Começa a tocar piano novamente e, impulsionada por uma propaganda da Chanel que usou uma de suas composições, volta a fazer shows para grandes públicos. Mudou-se para o Sul da França no final da vida e, dois dias antes de morrer, aos 70 anos de idade - ironias da vida - recebeu um diploma honorário da instituição que lhe recusou o sonho de ser a primeira pianista clássica "de cor" dos Estados Unidos.

Isso aqui é apenas um pequeno resumo da experiência magnífica que tive ao assistir o filme. Recomendo que assistam e tentem absorver o máximo dele. Vale muito a pena!

Pensamento do dia

"Extremismo é a falta de vontade de aceitar qualquer ponto de vista menos o próprio. O extremismo ideológico pode resultar num ato de violência quando um indivíduo defende suas ideias a tal ponto que ele acha que apenas suas ideias estão corretas e devem, assim, ser aplicadas a todo mundo". 

- Hisham Kabbani

terça-feira, 28 de julho de 2015

Zeca Camargo e a eliminação do "outro"

Não me pronunciei sobre o tema, mas agora que ele voltou à tona com a abertura de processo da família de Cristiano Araújo contra Zeca Camargo, acho oportuno me manifestar. Há de se ter muito cuidado com discursos como o do Zeca, que denunciou "a pobreza da atual alma cultural brasileira" devido à preferência de grandes contingentes pelo sertanejo. Nunca gostei de sertanejo. Se eu estiver ouvindo rádio e começar a tocar sertanejo, a chance de eu mudar de estação é de 100%. Se você me chamar para ir a uma boate sertaneja, a chance de eu ir é nula. No entanto, não desejo impor meus gostos pessoais a ninguém. O que me incomoda é a hegemonia do sertanejo em relação às demais formas de expressão musical. Hegemonia essa que a empresa para a qual Zeca trabalha é uma das maiores responsáveis por criar.

A Noite da Demolição da Disco (12/07/1979), um dos principais momentos
 de repúdio ao "outro" desde o fim do nazismo.

Para começo de conversa, não sei porque acharam que Zeca Camargo seria a pessoa mais gabaritada para falar sobre música popular. Ele não é um estudioso do tema, nunca escreveu nenhum artigo científico sobre o sertanejo e, em sua vasta carreira profissional de jornalista, se limitou a fazer a cobertura dos bastidores dos programas da Rede Globo, a auto-promoção disfarçada de jornalismo cultural. Isso é saber sobre cultura? Na minha humilde opinião, não. Também conheço muito pouco sobre a música popular feita no Brasil nos últimos anos. E confesso que conheço mais sobre a expressão musical dos Estados Unidos do que a brasileira. Por isso mesmo, sou capaz de fazer um paralelo entre o discurso de ódio de Zeca Camargo com o discurso de ódio dos roqueiros reacionários dos EUA no final da década de 1970.

Em meados dos anos 70, surgiu um novo estilo musical que logo conquistou a América. Era a disco music, que atingiu seu auge entre os anos de 1975 e 1980. Tratava-se de um estilo musical extremamente despretensioso e dançante e que, apesar de despolitizado, vinha a reboque dos movimentos negro, feminista e LGBT. De repente, uma legião de artistas negros, negras, gays, lésbicas e latinos ganharam as paradas de sucesso e as boates, com seu estilo musical simples, sexy e despojado. O que incomodou - e muito - a classe média branca do país. De repente, iniciou-se, a partir dos roqueiros, um movimento nacional de repúdio à disco music. Vejam só que ironia: o rock, que foi apropriado dos afro-americanos por Elvis Presley e Beatles, estava agora contra um estilo musical afro. Esse movimento culminou com a "Noite da Demolição da Disco" em 12 de julho de 1979 num estádio de baseball de Chicago.

O evento, que lembrou as fogueiras nazistas de Hitler, foi convocado pelo disc-jóquei de uma rádio de rock, Steve Dahl. Cerca de 50.000 pessoas levaram discos de vinil de artistas da disco music e jogaram-nos numa fogueira acendida pelo radialista. Ainda hoje o evento é estudado por acadêmicos como um mecanismo de legitimação do racismo, do machismo e da homofobia na sociedade americana. Segundo a cantora Gloria Gaynor, intérprete do hino gay "I Will Survive", a desmoralização da disco music foi "uma ideia criada por alguém que estava sendo afetado economicamente de maneira negativa pela popularidade da música disco". Eu penso que não só economicamente. Politicamente também. Era preciso afastar negros, negras, latinos, gays e lésbicas da mídia. Nem que fosse através da violência (que não chegou às vias de fato, ficou apenas no campo da intimidação). Era preciso desunir as minorias antes que elas formassem um movimento político.

O golpe final contra a disco music veio no início da década de 1980. Agora que a classe dominante já havia separado as minorias unidas pela música, só faltava voltá-las umas contra as outras. Espalhou-se o boato de que a cantora negra Donna Summer, a Rainha da Disco e única artista que sobrevivia à queda de popularidade do ritmo, era homofóbica. Sua música foi banida de boates gays, seu público diminuiu e ela só conseguiu apenas mais um hit antes de morrer esquecida pela grande mídia. Segundo o professor britânico Tim Lawrence, a fúria branca contra a música das minorias pode ser explicada devido à crise do petróleo: "Após o inesperado sucesso comercial de Os Embalos de Sábado à Noite, as grandes gravadoras começaram a investir maciçamente num som com o qual seus executivos brancos e héteros não se importavam e quando a hegemonia do disco coincidiu com uma grande recessão, a homofóbica (e também machista e sexista) campanha 'disco sucks' culminou com a queima dos discos".

Mas o que tudo isso tem a ver com Zeca Camargo? O apresentador se propõe a ser o Dahl brasileiro, o porta-voz de uma classe média branca e decadente que já não se vê mais representada em todos os espaços possíveis da mídia. Uma classe média que agora tem que lutar para impor seu gosto musical a todos. Que se incomoda com os gostos musicais da classe trabalhadora. Que não consegue mais virar os ouvidos ou fingir que não escuta o sertanejo. E quando, em momentos de crise, esses discursos de eliminação dos gostos do "outro" (que logo viram discursos de eliminação do "outro") começam a ganhar adeptos, é aí que começam os problemas.

domingo, 26 de julho de 2015

Santa ou puta?

Santa ou puta? Na arte sacra, as mulheres só assumem uma dessas formas
(Virgem Maria por  Sassoferrato, 1640-50 e Maria Madalena por Maíno, 1615)
Hoje estava vendo uma gravura da Virgem Maria e de Maria Madalena aos pés da cruz. Muito bonita, por sinal, mas algo nela me chamou a atenção: em virtualmente todas as representações artísticas do Novo Testamento Maria Madalena está com a cabeça descoberta e a Virgem Maria está com a cabeça coberta (em especial nas representações do calvário onde elas aparecem juntas). Acho meio difícil uma mulher judia transitar em público com a cabeça descoberta na Israel do século I e não ser apedrejada. Mas qual é a verdadeira intenção da iconografia católica? (Lembrando que desde o século XVI apenas os católicos incorrem da prática iconográfica). A intenção é retratar Maria como santa (que se cobre) e Maria Madalena como puta (que não se cobre). Apesar de ambas terem tido papel fundamental na trajetória de Jesus e terem sido canonizadas. Não há passagem alguma da Bíblia que afirme que Maria Madalena é a mulher que Jesus salvou do apedrejamento. No entanto, a Igreja Católica resolveu endossar essa versão para minimizar o papel histórico das lideranças femininas - que não era pequeno - na Igreja primitiva. De maneira semelhante, a virgindade perpétua de Maria não é um postulado bíblico e o texto sugere, várias vezes, que Jesus teve um irmão chamado Tiago.

As teorias da teologia católica, como a encíclica papal que identificou Maria Madalena como a adúltera e, mais recentemente, o dogma da virgindade perpétua, servem para definir o papel de homens e mulheres tanto na Igreja quanto na sociedade. Houve uma época inclusive que Igreja e sociedade se confundiam. E como as mudanças são lentas e graduais, ainda hoje está presente na sociedade o discurso de que as mulheres que não se cobrem são putas. A Igreja Católica contribuiu para isso para além da simbologia nas representações da Virgem Maria e de Maria Madalena. O Vaticano é um aliado importante do patriarcado ao não permitir que as fiéis controlem sua própria sexualidade e seu próprio corpo - são proibidas de usar pílulas anti-concepcionais, preservativos masculino ou feminino, DIU, kit anti-estupro, de abortarem, de fazerem laqueadura ou histerectomia e, é claro, de fazerem sexo por prazer. Até mesmo o debate sobre a desigualdade entre homens e mulheres é interditado das escolas municipais com o apoio da Igreja.

Ainda preso à teologia da Idade Média, o Vaticano não considera a sexualidade humana como uma dádiva de Deus. É apenas um meio - vergonhoso, sujo e pecaminoso - de se fazer bebês. Ora, se os bebês são puros e nascem livres do pecado e da maldade (ao contrário do que supõe o deputado Laerte Bessa), por que o método de fabricação deles seria impuro e pecaminoso? E porquê apenas uma das duas partes envolvidas na fabricação do bebê é sempre a mais punida por engajar nessa atividade? É o que os estudiosos chamam de complexo de Madonna: a rica experiência feminina, o ser mulher, se resume a dois lados antagônicos (santas e putas). Todas aquelas mulheres que não se encaixam num desses extremos (Maria Madalena, por exemplo, ou você, cara leitora) são readaptadas para se encaixar num desses pólos. E, assim, o mundo poda a expressão de mulheres interessantíssimas e se torna um lugar ainda mais chato e quadrado.

A Argentina sempre superando o Brasil

Lulismo desaba. Kirchnerismo sobrevive.
Ao buscar um modelo de desenvolvimento social, o Brasil deveria olhar mais para seus vizinhos do sul como a Argentina e o Uruguai e menos para as diretrizes que vêm do norte. No atual momento, os petistas deveriam se perguntar: porque o lulismo desaba e o kirchnerismo ainda se mantém de pé? Desde o início, o movimento político dos hermanos se apresenta como uma oposição à "terceira via" (conservadorismo econômico e liberalismo social) imposta por Tony Blair e Bill Clinton aos partidos de centro-esquerda, com a qual tanto PSDB quanto PT flertaram em seus anos na presidência. Ao invés de tentar governar com os poderes pré-estabelecidos - alguns deles paraestatais - o kirchnerismo bateu de frente com as cercas que impediam o aprofundamento da democracia argentina (sistema financeiro internacional, Judiciário, Igreja Católica e mídia). Mais importante do que projetar a imagem do país no exterior através da celebração de grandes eventos, o kirchenerismo percebeu que só conseguiria se manter no poder se mexesse nas estruturas da sociedade argentina. Ou seja, perceberam que tentar a conciliação entre atores políticos historicamente antagônicos não daria certo.

Ao assumir a presidência, Néstor Kirchner desafiou o FMI e renegociou a dívida externa do país. O lulismo segue favorecendo os banqueiros que se locupletam com o nosso suado dinheiro, que se transforma de impostos em pagamento dos juros da dívida pública antes que você consiga pronunciar Supercalifragilisticoespialidoso. Néstor também enfrentou a Suprema Corte, o que levou à revisão da lei de anistia e à consequente condenação dos torturadores do Regime Militar. Sua viúva Cristina, por sua vez, enfrentou o poderosíssimo conglomerado de mídia Grupo Clarín. Mesmo sofrendo um revés nas eleições parlamentares, ela não voltou atrás no projeto da Ley de Medios. Com isso, a Argentina dinamitou de uma vez por todas as bases sociais do golpismo (como bem notou Ariel Palácios ao comparar os protestos anti-Dilma e anti-Cristina, ninguém lá pede a volta dos militares). O lulismo, por sua vez, com sua obsessão fanática pela conciliação, não se propôs a enfrentar o status quo brasileiro em momento algum e agora vê seu capital político desabar em meio a sandices populistas que vão de pedidos de golpe militar a ameaças contra a vida da presidente. O grande erro do lulismo foi não insistir nas suas propostas e engavetá-las ao primeiro grito de oposição dos atores conservadores (ex: PNDH-3, Comissão de Jornalismo, etc.). E também de achar que seria possível "comprar", através de fartas verbas publicitárias, uma imprensa que se assemelha cada dia mais à Aurora Alemã, jornal do Partido Nazista no Sul do Brasil.

Além disso tudo, madame K ainda enfrentou outro ator poderosíssimo: a Igreja Católica, que ainda é a oficial do país (na figura do então Arcebispo de Buenos Aires, Jorge Mario Bergoglio, atual Papa Francisco), ao propor a legalização do casamento entre pessoas do mesmo sexo. Para não ser injusto, o PT também apresentou a proposta, mas no longínquo ano de 1995! E a deixou para lá quando chegou ao poder em prol da conciliação com grupos evangélicos conservadores que sempre falaram que Lula é a reencarnação do capiroto. A despeito de uma situação econômica tão delicada quanto a do Brasil (a inflação na Argentina é o dobro da nossa), Cristina vai muito bem, obrigado. Ao contrário do que promotores de Justiça populistas e atores e comediantes canastrões tentam fazer com a imagem dela e a despeito dos desejos mais profundos do jornal O Globo - parceiro fiel do Grupo Clarín - la señora presidenta deve eleger seu sucessor, o governador de Buenos Aires Daniel Scioli, nas eleições presidenciais desse ano, a serem realizadas em 25 de outubro. Scioli lidera as pesquisas de intenção de voto desde meados de maio. O governo da Argentina bateu de frente com o conservadorismo social de sua sociedade e o Partido Justicialista colhe os louros disso. O governo do Brasil ainda acha que é possível dialogar com esse mesmo conservadorismo e o Partido dos Trabalhadores, sem identificação no povo ou na elite, desaba.