domingo, 26 de julho de 2015

Santa ou puta?

Santa ou puta? Na arte sacra, as mulheres só assumem uma dessas formas
(Virgem Maria por  Sassoferrato, 1640-50 e Maria Madalena por Maíno, 1615)
Hoje estava vendo uma gravura da Virgem Maria e de Maria Madalena aos pés da cruz. Muito bonita, por sinal, mas algo nela me chamou a atenção: em virtualmente todas as representações artísticas do Novo Testamento Maria Madalena está com a cabeça descoberta e a Virgem Maria está com a cabeça coberta (em especial nas representações do calvário onde elas aparecem juntas). Acho meio difícil uma mulher judia transitar em público com a cabeça descoberta na Israel do século I e não ser apedrejada. Mas qual é a verdadeira intenção da iconografia católica? (Lembrando que desde o século XVI apenas os católicos incorrem da prática iconográfica). A intenção é retratar Maria como santa (que se cobre) e Maria Madalena como puta (que não se cobre). Apesar de ambas terem tido papel fundamental na trajetória de Jesus e terem sido canonizadas. Não há passagem alguma da Bíblia que afirme que Maria Madalena é a mulher que Jesus salvou do apedrejamento. No entanto, a Igreja Católica resolveu endossar essa versão para minimizar o papel histórico das lideranças femininas - que não era pequeno - na Igreja primitiva. De maneira semelhante, a virgindade perpétua de Maria não é um postulado bíblico e o texto sugere, várias vezes, que Jesus teve um irmão chamado Tiago.

As teorias da teologia católica, como a encíclica papal que identificou Maria Madalena como a adúltera e, mais recentemente, o dogma da virgindade perpétua, servem para definir o papel de homens e mulheres tanto na Igreja quanto na sociedade. Houve uma época inclusive que Igreja e sociedade se confundiam. E como as mudanças são lentas e graduais, ainda hoje está presente na sociedade o discurso de que as mulheres que não se cobrem são putas. A Igreja Católica contribuiu para isso para além da simbologia nas representações da Virgem Maria e de Maria Madalena. O Vaticano é um aliado importante do patriarcado ao não permitir que as fiéis controlem sua própria sexualidade e seu próprio corpo - são proibidas de usar pílulas anti-concepcionais, preservativos masculino ou feminino, DIU, kit anti-estupro, de abortarem, de fazerem laqueadura ou histerectomia e, é claro, de fazerem sexo por prazer. Até mesmo o debate sobre a desigualdade entre homens e mulheres é interditado das escolas municipais com o apoio da Igreja.

Ainda preso à teologia da Idade Média, o Vaticano não considera a sexualidade humana como uma dádiva de Deus. É apenas um meio - vergonhoso, sujo e pecaminoso - de se fazer bebês. Ora, se os bebês são puros e nascem livres do pecado e da maldade (ao contrário do que supõe o deputado Laerte Bessa), por que o método de fabricação deles seria impuro e pecaminoso? E porquê apenas uma das duas partes envolvidas na fabricação do bebê é sempre a mais punida por engajar nessa atividade? É o que os estudiosos chamam de complexo de Madonna: a rica experiência feminina, o ser mulher, se resume a dois lados antagônicos (santas e putas). Todas aquelas mulheres que não se encaixam num desses extremos (Maria Madalena, por exemplo, ou você, cara leitora) são readaptadas para se encaixar num desses pólos. E, assim, o mundo poda a expressão de mulheres interessantíssimas e se torna um lugar ainda mais chato e quadrado.

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