terça-feira, 28 de julho de 2015

Zeca Camargo e a eliminação do "outro"

Não me pronunciei sobre o tema, mas agora que ele voltou à tona com a abertura de processo da família de Cristiano Araújo contra Zeca Camargo, acho oportuno me manifestar. Há de se ter muito cuidado com discursos como o do Zeca, que denunciou "a pobreza da atual alma cultural brasileira" devido à preferência de grandes contingentes pelo sertanejo. Nunca gostei de sertanejo. Se eu estiver ouvindo rádio e começar a tocar sertanejo, a chance de eu mudar de estação é de 100%. Se você me chamar para ir a uma boate sertaneja, a chance de eu ir é nula. No entanto, não desejo impor meus gostos pessoais a ninguém. O que me incomoda é a hegemonia do sertanejo em relação às demais formas de expressão musical. Hegemonia essa que a empresa para a qual Zeca trabalha é uma das maiores responsáveis por criar.

A Noite da Demolição da Disco (12/07/1979), um dos principais momentos
 de repúdio ao "outro" desde o fim do nazismo.

Para começo de conversa, não sei porque acharam que Zeca Camargo seria a pessoa mais gabaritada para falar sobre música popular. Ele não é um estudioso do tema, nunca escreveu nenhum artigo científico sobre o sertanejo e, em sua vasta carreira profissional de jornalista, se limitou a fazer a cobertura dos bastidores dos programas da Rede Globo, a auto-promoção disfarçada de jornalismo cultural. Isso é saber sobre cultura? Na minha humilde opinião, não. Também conheço muito pouco sobre a música popular feita no Brasil nos últimos anos. E confesso que conheço mais sobre a expressão musical dos Estados Unidos do que a brasileira. Por isso mesmo, sou capaz de fazer um paralelo entre o discurso de ódio de Zeca Camargo com o discurso de ódio dos roqueiros reacionários dos EUA no final da década de 1970.

Em meados dos anos 70, surgiu um novo estilo musical que logo conquistou a América. Era a disco music, que atingiu seu auge entre os anos de 1975 e 1980. Tratava-se de um estilo musical extremamente despretensioso e dançante e que, apesar de despolitizado, vinha a reboque dos movimentos negro, feminista e LGBT. De repente, uma legião de artistas negros, negras, gays, lésbicas e latinos ganharam as paradas de sucesso e as boates, com seu estilo musical simples, sexy e despojado. O que incomodou - e muito - a classe média branca do país. De repente, iniciou-se, a partir dos roqueiros, um movimento nacional de repúdio à disco music. Vejam só que ironia: o rock, que foi apropriado dos afro-americanos por Elvis Presley e Beatles, estava agora contra um estilo musical afro. Esse movimento culminou com a "Noite da Demolição da Disco" em 12 de julho de 1979 num estádio de baseball de Chicago.

O evento, que lembrou as fogueiras nazistas de Hitler, foi convocado pelo disc-jóquei de uma rádio de rock, Steve Dahl. Cerca de 50.000 pessoas levaram discos de vinil de artistas da disco music e jogaram-nos numa fogueira acendida pelo radialista. Ainda hoje o evento é estudado por acadêmicos como um mecanismo de legitimação do racismo, do machismo e da homofobia na sociedade americana. Segundo a cantora Gloria Gaynor, intérprete do hino gay "I Will Survive", a desmoralização da disco music foi "uma ideia criada por alguém que estava sendo afetado economicamente de maneira negativa pela popularidade da música disco". Eu penso que não só economicamente. Politicamente também. Era preciso afastar negros, negras, latinos, gays e lésbicas da mídia. Nem que fosse através da violência (que não chegou às vias de fato, ficou apenas no campo da intimidação). Era preciso desunir as minorias antes que elas formassem um movimento político.

O golpe final contra a disco music veio no início da década de 1980. Agora que a classe dominante já havia separado as minorias unidas pela música, só faltava voltá-las umas contra as outras. Espalhou-se o boato de que a cantora negra Donna Summer, a Rainha da Disco e única artista que sobrevivia à queda de popularidade do ritmo, era homofóbica. Sua música foi banida de boates gays, seu público diminuiu e ela só conseguiu apenas mais um hit antes de morrer esquecida pela grande mídia. Segundo o professor britânico Tim Lawrence, a fúria branca contra a música das minorias pode ser explicada devido à crise do petróleo: "Após o inesperado sucesso comercial de Os Embalos de Sábado à Noite, as grandes gravadoras começaram a investir maciçamente num som com o qual seus executivos brancos e héteros não se importavam e quando a hegemonia do disco coincidiu com uma grande recessão, a homofóbica (e também machista e sexista) campanha 'disco sucks' culminou com a queima dos discos".

Mas o que tudo isso tem a ver com Zeca Camargo? O apresentador se propõe a ser o Dahl brasileiro, o porta-voz de uma classe média branca e decadente que já não se vê mais representada em todos os espaços possíveis da mídia. Uma classe média que agora tem que lutar para impor seu gosto musical a todos. Que se incomoda com os gostos musicais da classe trabalhadora. Que não consegue mais virar os ouvidos ou fingir que não escuta o sertanejo. E quando, em momentos de crise, esses discursos de eliminação dos gostos do "outro" (que logo viram discursos de eliminação do "outro") começam a ganhar adeptos, é aí que começam os problemas.

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