segunda-feira, 23 de novembro de 2015

Facebook, o Grande Irmão

Em 1984, sua obra-prima, o escritor britânico George Orwell prevê uma realidade distópica para o futuro da humanidade. O mundo se encontra dividido em três blocos supranacionais governados por líderes autoritários e que vivem em guerra entre si. O pensamento é desencorajado, pois pode levar ao dissenso, e os indivíduos são constantemente vigiados através de telões (que o autor chama de tele-telas) instalados em todas as residências, lojas e fábricas, possuindo o mínimo possível de privacidade. Na Oceania, onde mora o protagonista Winston Smith e onde a história se desenrola, o Grande Irmão (Big Brother, em inglês) é o responsável pela vigilância, estando sua imagem presente em todas as tele-telas acompanhada do anúncio "Big Brother is watching you" ("O Grande Irmão está te observando"). Muito já foi debatido se o Big Brother, que é o líder da Oceania, existia de verdade ou se ele era apenas um mecanismo de intimidação da burocracia estatal.
Tele-tela conforme imaginada no filme de Michael Radford.
Quando a televisão se popularizou no Ocidente em meados da década de 1950, críticos sociais começaram a se indagar se as tele-telas orwellianas não teriam finalmente se tornado realidade. No entanto, os aparelhos de televisão da época apenas recebiam os sinais enviados pelas antenas de tevê. Não eram capazes de captar imagens e, muito menos, enviá-las para alguma empresa ou órgão de controle estatal. Hoje em dia, no entanto, as tele-telas já existem. São os computadores e os aparelhos celulares e televisores "inteligentes" (os smartphones e as smart TVs), onde se acumula um número cada vez maior de informação sobre seus usuários. Quantas vezes não vamos preencher um formulário on-line e nossas informações já estão gravadas no navegador? Da nossa data de nascimento ao número de nosso cartão de crédito, nossos celulares sabem tudo sobre nós. E, o que é mais chocante de tudo, são empresas privadas (e não o Estado) que estão gerenciando essas informações!

Se por um lado Orwell acertou ao imaginar um futuro onde o pensamento e a privacidade são mínimos, ele errou ao imaginar que seriam os governos os principais promotores dessa nova realidade. Uma empresa em particular se destaca pelo número absurdamente exagerado de informações que guarda sobre seus usuários: o Facebook. Ao aceitarmos os termos de uso daquela rede social estamos, consciente ou inconscientemente, abdicando de nossa privacidade e de nosso interesse em buscar um diálogo mais calcado na racionalidade do que na passionalidade. Os erros de Orwell foram os acertos de Aldous Huxley, outro escritor britânico do século passado que também previu um futuro distópico da humanidade em seu Admirável Mundo Novo. Confesso que não sou familiarizado com a obra de Huxley, mas o crítico social Neil Postman escreveu o seguinte sobre as diferenças entre 1984 e Admirável Mundo Novo:

"O que Orwell temia era aqueles que queimariam livros. O que Huxley temia era que não haveria razão para queimar livros, uma vez que ninguém mais teria interesse em lê-los. Orwell temia os que nos privariam de informação. Huxley temia aqueles que nos dariam tanta informação que nos tornaríamos apáticos e egotistas. Orwell temia que a verdade seria escondida de nós. Huxley temia que a verdade se tornaria irrelevante. Orwell temia que nossa cultura seria aprisionada. Huxley temia que nossa cultura seria banalizada (...) Em resumo, Orwell temia que o medo nos arruinaria. Huxley temia que nosso desejo nos arruinaria". In: POSTMAN, Neil. Amusing Ouselves to Death. Nova York: Viking, 1985.

O Big Brother não é um ditador autoritário que nos oprime. Não é Edgar Hoover que usa todos os meios possíveis para eliminar o pensamento anti-establishment da sociedade. Não é tampouco a NSA, que viola a privacidade tanto do jovem jovem muçulmano do subúrbio de Detroit quanto da presidenta do Brasil. Afinal de contas, a NSA só consegue informações sobre cidadãos, comuns ou não, porque empresas privadas como o Facebook estão dispostas a repassá-las ao órgão de espionagem do governo estadunidense. O Big Brother é um logotipo azul e branco que nos indaga: "No que você está pensando?", como se guardar os pensamentos para si mesmo fosse algo ruim. O Big Brother é uma empresa que sabe quando nascemos, para onde viajamos nas férias, qual nossa preferência político-partidária e quando estamos de bom e mau humor. E ela nos incentiva a sermos todos Grandes Irmãos. Afinal de contas, nossos amigos e seguidores estão acompanhando todo e qualquer movimento nosso, assim como estamos acompanhando os passos deles.

O mais interessante disso tudo é que não percebemos a invasão de nossa privacidade como uma opressão. Segundo Noel Sharkey, professor de inteligência artificial da Universidade de Sheffield, as novas gerações estão dispostas a conceder sua privacidade para uma empresa privada porque não estão familiarizadas com a obra de Orwell. Elas não imaginam que o extermínio da privacidade possa ser algo ruim até que se vêem como vítimas dele - caso, por exemplo, de pessoas comuns que têm suas vidas arruinadas pela divulgação de fotos íntimas. No momento em que postamos algo na rede, mesmo que em mensagem privada (uma foto nua para o namorado, por exemplo), perdemos o controle sobre aquilo. E, ao contrário do que se pensa, mesmo após deletada aquela informação está guardada para sempre. Sua foto nua está salva no servidor do Facebook em algum canto do mundo. Como diz uma piada que vi recentemente: "se a NSA está guardando todas nossas informações da internet, então ela possui a maior coleção de pornografia da história".

Como disse Postman, o desejo nos arruína. Pelo desejo de ser popular e encontrar pessoas com quem possamos compartilhar nossas ideias, entramos num mundo sem privacidade. Esse desejo é maior do que o de resguardar nossa imagem pessoal. No Facebook, temos tanta informação que não sabemos lidar com elas. Afinal, qual tragédia é mais importante, a de Mariana ou a de Paris? Nos tornamos apáticos à morte de outros seres humanos por causa do grupo ideológico ao qual pertencemos. E não adianta apontar para o indivíduo que ele está sendo egotista, ou seja, que está olhando apenas para seu próprio universo, pois no Facebook não somos encorajados a embasar nossas opiniões e argumentos em leituras ou análises críticas da realidade. Para fazer isso, é preciso sair do espaço virtual, o que aquela rede social não deseja que façamos. No Facebook temos a falsa sensação de que estamos obtendo todas as informações necessárias e perdemos a ânsia pelo verdadeiro conhecimento.

O conhecimento surge, muitas vezes, do embate de ideias. O professor apresenta ao aluno os diferentes modelos de organização social existentes, cada um com seus prós e contras, e este último decide escolher um com o qual se identifica. Os pais apresentam ao filho as diferentes religiões existentes e este decide escolher uma com a qual se identifica. Mas o Facebook é a terra da interdição da coexistência pacífica entre as ideias diferentes. O que importa é vencer a discussão com aquele religioso alienado que mora a 1.000 quilômetros de distância de mim ou com aquele tucano alienado que mora a 2.500 quilômetros de distância e que jamais vou conhecer pessoalmente. Os algoritmos da rede social faz com que tenhamos acesso apenas às pessoas e páginas que pensam de maneira semelhante à nossa. De repente o mundo, composto por várias verdades na sua dimensão real, passa a ser composto por apenas uma verdade na sua dimensão virtual.

A verdade se tornou irrelevante. Assim como Winston Smith, somos desencorajados a pensar, pois pensar pode nos tornar párias sociais. Recentemente, Ciro Gomes e Roberto Requião, que fazem críticas acertadíssimas à política econômica da presidenta Dilma Rousseff, passaram a ser atacados pelos defensores da verdade petista, pois podem levar ao dissenso entre os membros daquele grupo que se acredita coeso. Foram logo atacados e desmerecidos no plano pessoal, pois, como disse anteriormente, o Facebook é o reino do passional e não do racional. Quem decidir apoiar o senador ou o ex-ministro vai virar pária para os petistas. O fato é que, com as redes sociais, voltamos à sociedade tribal. As contendas são vencidas através da violência virtual, através da união dos membros dos grupos virtuais para derrubar páginas, promover hashtags e xingamentos orquestrados e denunciar passionalmente os partidários da ideologia contrária. Às vezes a violência virtual escorre para o mundo real, como ocorreu em Brasília durante a marcha das mulheres negras.

Facebook is watching you.
Orwell imaginou um futuro caótico onde três Estados nacionais fortes suprimiriam o bem-estar individual em sua luta pela dominação mundial. Imagino um futuro caótico onde empresas multinacionais fortes suprimirão o bem-estar individual em sua luta pela dominação mundial. E, o que é pior de tudo, essa dominação não é vista como tal pelas pessoas comuns. O Facebook soube trabalhar muito bem com o desejo do ser humano de se sentir aceito e de viver em comunidade para solapar-nos de nossas privacidades. Em troca de pertencermos a tribos virtuais, oferecemos nossas informações mais íntimas, que são registradas e acessadas a qualquer minuto pela rede social, que vende-as para empresas de comércio virtual e repassa-as para órgãos de espionagem. O futuro é sombrio.Viveremos numa sociedade tribal, inepta à resolução de conflitos através do diálogo, criada por empresas que sabem tudo sobre nós. Eis o admirável mundo novo: Facebook is watching you.

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