domingo, 6 de dezembro de 2015

José e Maria, os refugiados

Hoje a comunidade cristã comemora o segundo domingo do Advento, ou seja, há uma semana iniciaram-se as preparações para a festa mais importante da fé cristã: o Natal de Nosso Senhor Jesus Cristo. Nesse momento, somos instigados a lembrarmos da narrativa bíblica, onde um jovem casal de Nazaré se dirige para Belém com a finalidade de serem contados pelos oficiais do recenseamento como cidadãos do Império Romano, estado que dominava a região. Ao chegarem na cidade, se depararam com uma situação atípica: todas as estalagens estavam ocupadas. O casal acaba encontrando refúgio num estábulo, onde a jovem Maria de Nazaré dá à luz o profeta da maior religião do mundo. O Salvador do Mundo nasceu junto de animais de fazenda, sem luxo ou  conforto. Apesar da distorção teológica contemporânea de alguns cristãos,  a simplicidade e a humildade são marcas essenciais da narrativa cristã.

Como já virou recorrente na história do cristianismo, as pessoas revisitam a história de Jesus sem apreender a mensagem por trás dela. Nesse novo Advento, início do 2.016° ano da era cristã, muitas famílias montam seus presépios, que retratam uma família de refugiados do século I, enquanto atacam Marias e Josés de uma nova era. Assim como os pais de Jesus, os casais sírios precisam de nossa ajuda. Assim como o menino Jesus, os bebês haitianos que também nascem em condições insalubres antes de partirem para o exílio precisam de nossa compaixão. A alma caridosa que cedeu um teto, mesmo que de um estábulo, para os pais de Jesus de Nazaré sequer é citada nominalmente na narrativa bíblica, mas sua lição ecoa até os dias de hoje como exemplo de compaixão e amor ao próximo. É o ponto central do ministério de Jesus. E, para os que distorcem a teologia e valorizam mais o Antigo Testamento do que o Novo, é o ponto central também da narrativa de Sodoma e Gomorra. As cidades foram destruídas porque não sabiam acolher os estrangeiros.

Trecho da minissérie The Bible.
De que adianta ler a Bíblia, saber citá-la ipsis litteris, se não se incorporou a mensagem dela no âmago de sua alma? Hoje o mundo cristão se fecha para os refugiados de outras religiões – nomeadamente o vudu haitiano e o Islã das vertentes minoritárias. Logo os cristãos, que foram tão perseguidos por judeus e pelos seguidores da religião mitológica greco-romana nos primeiros séculos de sua caminhada, jogados aos leões no Coliseu como forma de entretenimento da elite romana. Logo os cristãos, cujo Cristo desafiava as normas sociais vigentes em sua época e se misturava com os samaritanos, minoria religiosa ainda hoje perseguida pelo status quo judaico em Israel. Ler a Bíblia é muito legal, mas interpretá-la é o que diferencia um conhecedor de um fiel. Ser um seguidor de Jesus Cristo, para mim, significa apreender todas as lições de seu Evangelho e não somente aqueles trechos que melhor me convém.

No debate sobre os refugiados, deixamo-nos tomar pelo medo. Medo de que os muçulmanos que estão vindo da Síria sejam extremistas (embora eles estejam fugindo dos extremistas), medo de que os haitianos tomem nossos empregos (embora a maioria deles tenha tido uma educação precária ao extremo e não ofereçam grandes riscos). Quando indagado sobre quem seria o vizinho que deveria se amar, Jesus não apontou para um judeu como ele, mas para um samaritano. O bom samaritano, que importou-se em cuidar de um homem – que não era de sua religião ou cultura – caído e ferido na beira da estrada após um assalto. Apesar de não seguir a religião majoritária, ele demonstrou, para Jesus, agir mais conforme a palavra de Deus do que  aqueles que ficavam no Templo de Jerusalém ditando como os religiosos deveriam agir para agradar a Deus. No momento estamos passando pela estrada e deixando o homem ferido caído lá.

José e Maria também dependeram da bondade de um estranho para terem a criança que mudaria o mundo com seus ensinamentos sobre amor e compaixão. Eram refugiados, mesmo que temporários (se você acredita na história da fuga para o Egito, então foram ainda mais do que refugiados temporários), e precisaram contar com a ajuda de estranhos. Se a história do casal se repetisse hoje, eles teriam o pedido de refúgio negado por aqueles que montam presépios que retratam a história deles mesmos! Não estamos fechando a porta para casais sírios ou haitianos, estamos fechando a porta para José e Maria. A lição do cristianismo é uma lição de cuidado e ajuda ao próximo, em especial àqueles que estão à margem da sociedade, mas em algum ponto do desenvolvimento da nossa religião nos esquecemos disso. Enquanto montamos nossos presépios com José e Maria, os refugiados, falamos mal de sírios e haitianos que tentam uma vida melhor em nosso país, dito cristão.

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