terça-feira, 15 de agosto de 2017

Dietrich ou Jannings?

O final de semana foi marcado pelas notícias sobre o reaparecimento do nazismo enquanto movimento político que se manifesta publicamente no estado da Virgínia, no sul dos Estados Unidos. Nesse cenário, me vem à mente duas figuras alemãs do século passado: o ator Emil Jannings (1884–1950) e a atriz e cantora Marlene Dietrich (1901–1992). Ambos foram atores que despontaram na indústria cinematográfica dos Estados Unidos entre o final da década de 1920 e o início da década de 1930. Jannings venceu o primeiro Oscar de melhor ator em 1929, enquanto Dietrich foi indicada ao prêmio de melhor atriz na quarta cerimônia em 1931. Enquanto ambos encontravam fama em Hollywood, a nação deles experienciava um caos político, social e econômico sem precedentes que culminaria com o fim da breve experiência democrática conhecida como República de Weimar (1919–1933). Ambos estrelaram juntos no filme O Anjo Azul (1930), do cineasta austríaco judeu Josef von Sternberg. Mas as coincidências entre eles acabam por aí. Hoje ocupam papéis diametralmente diferentes no imaginário popular do ocidente.

Emil Jannings e Marlene Dietrich em O Anjo Azul (1930),
antes dele virar entusiasta do nazismo.
Marlene Dietrich, uma das raras figuras alemãs de seu tempo que defendia uma solução democrática para o fim da crise na qual seu país se encontrava, é lembrada hoje como a musa da resistência ao nazismo. Ela se apresentou para tropas aliadas em toda a Europa como forma de elevar a moral dos soldados que lutavam contra o avanço do nazismo no continente. Adolf Hitler, ciente da enorme popularidade da atriz no mundo, tentou levá-la de volta para o cinema alemão, a esta altura reduzido a um mero meio de propagação da ideologia ariana e da suposta superioridade alemã em relação aos outros povos do mundo. Enquanto filmava O Amor Nasceu do Ódio (1937) em Londres, membros do Partido Nazista se aproximaram dela e ofereceram-lhe um contrato lucrativo para retornar à Alemanha. Ela não só recusou a oferta como doou todo seu salário no filme — US$ 7,7 milhões em valores atuais — para iniciativas que ajudavam os refugiados do nazismo. Ao retornar aos Estados Unidos, deu entrada em seu processo de naturalização. Ela renunciaria à cidadania alemã ao se tornar cidadã estadunidense, em 1939.

Emil Jannings tomou um caminho completamente distinto. Com sua popularidade em declínio nos Estados Unidos — o que historiadores do cinema atribuem ao advento do cinema falado e ao forte sotaque do ator —, Jannings retornou à Alemanha em 1932 e aceitou ser o protagonista de uma série de filmes que exaltavam figuras históricas nacionalistas para o Terceiro Reich (1933–1945). Estrelou em doze filmes no período e foi, sem sombra de dúvidas, um dos atores mais famosos de seu país durante o reinado de Adolf Hitler. As filmagens de um décimo terceiro filme, Wo ist Herr Belling?, foram interrompidas quando as tropas aliadas invadiram a Alemanha na primavera de 1945. Segundo relatos, Jannings teria mostrado sua estatueta do Oscar aos soldados como prova de sua associação com os Estados Unidos e, consequentemente, evitar sua prisão. Devido a sua contribuição para a Alemanha Nazista, Jannings foi alvo de Berufsverbot (banimento profissional) pelos aliados, sendo proibido de exercer novamente sua profissão até a desnazificação do país. Ele preferiu se aposentar. Mudou-se para a Áustria, onde morreu em completo ostracismo em 1950.

Marlene Dietrich entretendo soldados aliados.
No final da década de 1940, Dietrich, por sua vez, recebeu as maiores honrarias civis dos governos estadunidense e francês. Seus esforços contra o nazismo começaram antes mesmo dos Estados Unidos declararem guerra à Alemanha. No final da década de 1930, ela se uniu ao diretor austríaco judeu Billy Wilder para criar um fundo de assistência aos judeus que desejavam escapar da Alemanha. Quando os Estados Unidos entraram no conflito, em 1941, Dietrich foi uma das primeiras celebridades a ajudar a vender títulos de crédito para financiar o exército estadunidense. Entre janeiro de 1942 e setembro de 1943 ela se apresentou para mais de 250 mil tropas no país. Em 1944 e 1945, ela se apresentou para tropas aliadas na Argélia, na Itália, no Reino Unido, na França e na Alemanha. Ao entrar na Alemanha, foi indagada do porquê faria isso, uma vez que estaria colocando sua própria vida em risco, estando a poucos quilômetros de distância dos nazistas. "Faço isso por decência", retrucou. Segundo Wilder, a atriz esteve presente em mais linhas de frente do que Dwight D. Eisenhower, general que comandava as Forças Expedicionárias Aliadas.

Joseph Goebbels, ministro da propaganda de Adolf Hitler, e o
ator Emil Jannings.
Enquanto Dietrich usava seu talento para defender a "decência", Jannings — ainda hoje o único alemão vencedor do Oscar de melhor ator, descrito pela Encyclopædia Britannica como "um dos melhores atores de sua geração" — emprestava-o a um regime que matou aproximadamente 10 milhões de pessoas. Ele, na verdade, era o rosto deste regime. Jannings traduzia a ideologia nacionalista do regime para o alemão comum, ao interpretar a versão nazificada de heróis nacionais como Otto von Bismarck e Frederico Guilherme da Prússia nas telas. Em 1942, ano em que os trens da morte começavam a transportar os inimigos do nazismo para os campos de concentração, Jannings escreveu para a Nationalsozialistische Monatshefte, revista de cultura do Partido Nazista, sobre a meta do regime de mostrar, no cinema, homens e mulheres que conseguem dominar seus próprios destinos como modelos a serem seguidos pelo público. Do outro lado do Atlântico, Dietrich se tornava a celebridade que mais vendia títulos de crédito do exército estadunidense. Indagada sobre as atividades nazistas de seu ex-colega nas telas, Dietrich teria dito que ele era um "porco".

Embora tenha lutado incessantemente para livrar seu povo das garras do nazismo, o retorno da atriz à Alemanha não foi exatamente um sucesso. Em 1960, durante uma turnê em sua terra natal, Dietrich foi recebida de maneira amarga pela direita alemã. Os viúvos do nazismo acusavam-na de ser uma "traidora da pátria" e ameaçaram bombardear o palco de seus shows duas vezes. Durante sua apresentação no teatro Titania Palast, em Berlim, o público gritou "Fora Marlene!". Ela foi defendida pelo então prefeito da cidade, o social-democrata Willy Brandt, que, assim como ela, opôs-se ao nazismo e exilou-se do regime no exterior. A turnê foi um fracasso comercial e Dietrich, emocionalmente fragilizada pela hostilidade que encontrou em sua cidade natal, prometeu nunca mais retornar ao país. Na Alemanha Oriental, no entanto, ela foi melhor recebida. Em Israel, a turnê da artista que doou milhões de dólares para os refugiados judeus foi muito bem recebida. Ela cantou em alemão, quebrando o protocolo contra o uso do idioma no país, e ganhou a Medalha de Honra do governo, tornando-se a segunda mulher alemã a receber tal honraria. 

Goebbels (Sylvester Groth) mostrando o anel de honra que
deu para Jannings (Hilmar Eichhorn) em cena do filme
Bastardos Inglórios, de Quentin Tarantino.
Se a imagem de Dietrich não foi completamente reabilitada em vida, seria após sua morte em 1992. Naquele ano, uma placa comemorativa foi colocada no local de seu nascimento em Berlim, onde é possível ler: "Foi uma das poucas atrizes alemãs que conseguiram fama internacional e, apesar das ofertas tentadoras do regime nazista, emigrou para os EUA e se tornou cidadã americana". Um selo com sua imagem foi lançada pelos correios da Alemanha em 1997. No mesmo ano, uma praça na capital alemã foi inaugurada em sua homenagem. Lê-se numa placa no local: "Estrela berlinense do cinema e da música, dedicada à liberdade e à democracia, a Berlim e à Alemanha". Emil Jannings, por sua vez, foi "homenageado" no filme Bastardos Inglórios (2009), de Quentin Tarantino, onde exibe para os outros personagens o anel de "artista do estado" que ganhou de Joseph Goebbels. Ele é apresentado não como um ator genial, mas como quem preferiu a fama à compaixão aos judeus, muitos dos quais ajudaram-no a construir sua carreira, como é o caso dos cineastas Sternberg, E.A. Dupont, Paul Leni e, principalmente, Ernst Lubitsch, que o dirigiu em sete filmes.

As ofertas tentadoras do regime nazista eram simplesmente boas demais para Emil Jannings recusar. Mesmo que se argumente que ele estava apenas tentando sobreviver num ambiente hostil à liberdade artística, um artista com o mínimo de decência — parafraseando Dietrich — não escreveria um artigo para a revista de cultura do Partido Nazista. Ao que tudo indica,  Jannings — ao contrário de outros artistas alemães do período, que mais tarde disseram que estavam apenas trabalhando na indústria sem apoiar os horrores da "solução final" para os judeus — foi um entusiasta do nazismo. Segundo Wagner Pinheiro Pereira, autor do livro O Poder das Imagens: Cinema e política nos governos de Adolf Hitler e de Franklin D. Roosevelt, o ator teria sugerido ao ministro da propaganda Joseph Goebbels a produção do filme Tio Krüger (1941), uma denúncia do imperialismo britânico, como forma de mostrar ao mundo que não foram os alemães que inventaram os campos de concentração, mas sim os britânicos, durante a Guerra dos Bôeres (1899–1902). Não coincidentemente, o ator recebeu o já mencionado anel de honra após esse filme.

Placa na Praça Marlene Dietrich em Berlim. Não existem
homenagens públicas a Emil Jannings no país.
A relativização dos campos de concentração criados pela Alemanha segue a mesma lógica das tentativas de muitos conservadores de relativizar as manifestações nazistas que ocorreram no último final de semana nos Estados Unidos. Trata-se de denunciar quem está denunciando: os alemães construíram 1.200 campos de concentração, mas os britânicos operaram 45 três décadas antes; a direita está pedindo abertamente a morte de minorias na rua, mas a esquerda também tem os seus crimes. A adoção dessa estratégia goebbeliana de defesa política mostra que o nazismo novamente faz a cabeça dos conservadores no mundo todo. Novamente a dita civilização chegou num ponto de radicalização e precisamos decidir se vamos agir pela decência ou se vamos aderir à opressão das minorias para recebermos as ofertas tentadoras de um movimento ideológico que, sete décadas após devastar a Europa, está novamente virando moda entre cidadãos histéricos e inconsequentes. Precisamos decidir a quem vamos querer ser comparados no futuro: Dietrich ou Jannings? Basicamente, trata-se de uma escolha entre a democracia e a barbárie.

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