segunda-feira, 7 de agosto de 2017

O rosto de uma nação

Com seu silêncio apático sobre a continuidade do governo Michel Temer, garantida na última quarta-feira por uma Câmara dos Deputados comprada com emendas parlamentares, as classes mais abastadas do Brasil finalmente mostraram sua cara. O poeta Cazuza, incomodado com a hipocrisia da casta da qual ele fazia parte, queria que isso tivesse acontecido já no final dos anos 1980. Trata-se de uma cara desfigurada, como a de Anna Holm (Joan Crawford), personagem principal do filme clássico Um Rosto de Mulher (A Woman's Face), de 1941. Assim como Anna, o brasileiro de classe média é ridicularizado todas as vezes em que permite que os outros vejam seu rosto. Assim sendo, não conseguiu desenvolver-se de maneira saudável e encontrou na extorsão, na chantagem e na manipulação uma forma de subsistência. O "jeitinho", no entanto, parecia que iria ficar para trás quando entrou em cena quem estava disposto a mudar essa história.

Anna Holm (Joan Crawford) em cena
do filme Um Rosto de Mulher, de 1941.
Anna, assim como a classe média brasileira, tinha dúvidas das boas intenções de quem prometia dar-lhe um novo rosto. A operação, no entanto, foi um sucesso, apesar de ser demorada e invasiva. Mas Anna sente-se em dívida com o namorado, um bandido como ela, porque ele já amava-a quando seu rosto ainda era deformado. De maneira semelhante, o brasileiro médio, após ir ao paraíso do consumo na década passada com o PT, sente-se em dívida com o PMDB, um partido corrupto como ele, que sempre guiou sua vida e que melhor traduz suas atitudes cotidianas. Afinal de contas, este é o maior partido do Brasil sob qualquer número em que seja analisado: filiados (2,4 milhões), governadores (7), de prefeitos (1.028), senadores (22), deputados federais (68), deputados estaduais (142) e vereadores (7.551). O brasileiro médio sempre trocou juras de amor com o PMDB. E não dá para mudar o coração só mudando o rosto.

Durante o clímax de Um Rosto de Mulher, Anna precisa decidir se quer ser linda também por dentro ou se vai permitir que a imagem horrorosa de bandida, que construiu para si mesma como forma de se proteger do ostracismo social, vai continuar acompanhando-a. No caso do brasileiro médio, parece-me que essa escolha já foi feita. Escolhemos ser bandidos peemedebistas — ou, pelo menos, cúmplices deles. Talvez a operação que reformou o rosto do brasileiro não tenha sido tão bem sucedida assim e nosso rosto permaneça desfigurado de alguma forma, afetando nossa auto-imagem. Esta é a visão dos críticos de esquerda do PT. Já eu tenho opinião diversa. Penso que o governo que realizou esta cirurgia — muito bem sucedida entre os brasileiros pobres — não foi capaz de operar o milagre de reformar o caráter da classe média. E penso que governo nenhum será capaz disso, porque esta casta social se move por ideias egoístas e individualistas.

Independente da controvérsia se a operação foi bem sucedida ou não, sinto que nós, brasileiros de classe média, ainda iremos a julgamento por nossa opção pelo banditismo, assim como Anna Holm. Nem que seja o julgamento da História. E, assim como no filme, nossa cara será o assunto principal a ser discutido no tribunal. Um rosto que buscou ser operado, mas cuja cirurgia parece não ter tido influencia alguma sob nosso caráter. Chegamos no clímax da história e escolhemos continuar no caminho fácil e rápido do banditismo. Quando o dia do julgamento chegar, infelizmente estarei lá na mesma posição de arrependimento do cirurgião plástico de Anna, pensando que desperdicei meu tempo acreditando na mudança do coração de gelo de um ser com potencial através do embelezamento de seu rosto. Investi meu tempo na criação de um monstro: uma criatura linda e cheia de si por fora e horrível — cínica e hipócrita — por dentro. Eis o rosto de uma nação brasileira.

Nenhum comentário:

Postar um comentário