segunda-feira, 16 de maio de 2016

O golpe à saúde das mulheres

Na última quinta-feira, após muitos meses de articulações, o golpe contra Dilma Rousseff foi finalmente concretizado. Uma das primeiras notícias veiculadas sobre o governo do presidente interino, Michel Temer, é de que se trata do primeiro sem ministras desde 1979. Esta notícia não me surpreendeu nem um pouco. Eu já havia indicado o caráter sexista do golpe de Estado em texto escrito para a United Society, serviço de missão da Igreja da Inglaterra. O que me surpreende, no entanto, é que até hoje a direita brasileira não tenha aberto espaço para as mulheres em suas agremiações partidárias. O recado que passaram para mim na composição do novo gabinete é de que mais da metade do eleitorado brasileiro não importa para eles.

Simone Veil: Na França a direita política não
está necessariamente ligada à religiosa.
Isto me faz recordar a trajetória política de Simone Veil, ministra da saúde da França entre 1974 e 1979 no governo de centro-direita do presidente Valéry Giscard d'Estaing. Ela apresentou ao Parlamento francês um projeto de lei descriminalizando o aborto até 12 semanas após a concepção e até 14 semanas após a última menstruação. O projeto foi aprovado, após ataques de grupos católicos à família da ministra, no dia 17 de janeiro de 1975 e é conhecido, desde então, como "Lei Veil". A política se tornou símbolo da saúde das mulheres e foi eleita para o Parlamento Europeu em 1979, se tornando a primeira presidenta daquele órgão legislativo. Por seus esforços civilizatórios, Simone Veil foi transformada em dama do Império Britânico pela Rainha Elizabeth II em 1998.

No Brasil a direita política parece não sobreviver sem a direita religiosa, com quem forma uma relação de simbiose. Em 2006 a deputada federal fluminense Jandira Feghali foi alvo de intensa campanha apócrifa durante a eleição para o Senado após ter sugerido que o aborto deveria ser tratado pelo viés da saúde pública e não da moral religiosa. Quatro anos mais tarde, Dilma Rousseff foi acusada de ser favorável a "matar bebês" por Mônica Allende, esposa do então candidato a presidente José Serra (mais tarde foi revelado que ela própria, hipócrita, havia abortado no Chile). A tentativa de associar Dilma à legalização do aborto contou até mesmo com a ajuda do Papa Bento XVI, que divulgou mensagem aos brasileiros para que não votassem em candidatos pró-escolha.

Desde que Serra e o PSDB optaram pela aliança com a direita religiosa para derrubar o PT, o discurso irresponsável contra a consolidação dos direitos individuais ganhou força no país. Ano passado o então presidente da Câmara, Eduardo Cunha, conseguiu emplacar um projeto de lei que dificulta o acesso à pílula do dia seguinte em hospitais públicos. Na posse de seu correligionário, Michel Temer, era possível ver o pastor pentecostal Silas Malafaia, maior ativista pró-vida do país, ao lado dos membros do novo governo. Para marcar sua posição no debate, o deputado Jean Wyllys apresentou, em 2015, um projeto de lei despenalizando o aborto. Mesmo com chances mínimas de ser aprovado no Congresso mais conservador da história, o deputado sofreu toda sorte de ataques de grupos religiosos.

Ao invés de escutarmos os profissionais de saúde e as próprias mulheres na hora de escolher o que é melhor para a saúde delas, deixamos Cunha, o cirurgião da propina de Furnas, decidir. Enquanto o "doutor" Cunha (palavra banalizada nos trópicos) decide quem pode ou não tomar a pílula do dia seguinte no Brasil, o projeto de descriminalização do aborto no Reino Unido, no longínquo ano de 1967, foi supervisionado pelo Dr. John Peel, presidente da Faculdade Real de Obstetrícia e Ginecologia e ginecologista pessoal da Rainha Elizabeth II de 1961 a 1973. Ao deixar as mulheres de escanteio em seu gabinete e privilegiar religiosos como Malafaia em sua cerimônia de posse, o governo Temer mostra ao que veio: aumentar o já escandaloso número de mulheres que morrem ao se submeter a abortos insalubres.

Eduardo Cunha, correligionário de Temer, já deu o recado.
Até mesmo o aborto legal — previsto desde 1940 para casos de gestações fruto de estupro e que oferecem risco à vida da mulher — está sob o ataque dos grupos religiosos do Congresso. Isto se dá porque o Brasil não é governado por damas e cavalheiros. E parece se orgulhar disso! Só não sei porque ainda nos damos ao trabalho de fingir que somos civilizados quando estamos na presença de europeus ou americanos do norte. Não adianta ir na página dos jornais gringos reclamar da cobertura desses veículos ao golpe machista a Dilma e às mulheres brasileiras. Eles já sacaram qual é a nossa. Somos hipócritas. Nossa moral só é relaxada durante o Carnaval. No resto do ano varremos nossos problemas para debaixo do tapete. E é exatamente isso que Temer vai fazer com os cadáveres das vítimas de aborto insalubre. O golpe por ele liderado foi orquestrado com grupos da direita religiosa e, por isso mesmo, também será um golpe à saúde das mulheres.

Atualização 1 (18/05/2016 às 05:15): Um dia após a publicação desse artigo o novo ministro da saúde, Ricardo Barros, afirmou que o governo interino não deve se posicionar sobre a questão do aborto sem antes ouvir as igrejas. É um recado claro às mulheres: a saúde delas está submetida à moral cristã num Estado que se diz laico.

Atualização 2 (12/06/2016 às 08:29): A Secretária de Políticas para Mulheres de Michel Temer, a ex-deputada evangélica Fátima Pelaes (PMDB-AP), é contra o aborto até mesmo para gravidezes resultantes de estupro.

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