sábado, 20 de fevereiro de 2016

Violência contra a mulher: Só resta rogar à Virgem?

Essa semana comecei a assistir American Crime Story, nova série antológica de Ryan Murphy que a cada temporada vai contar a história de um crime verdadeiro. A primeira temporada, intitulada The people vs. O.J. Simpson, narra a história do assassinato de Nicole Brown por seu ex-marido, o jogador de futebol e ator Orenthal James Simpson, e o subsequente julgamento dele, conhecido à época como "o julgamento do século", dado o tamanho do escrutínio da mídia. É ultrajante ver que a comunidade negra dos Estados Unidos, à época furiosa com o tratamento dispensado pelo Departamento de Polícia de Los Angeles aos cidadãos negros, usou o caso O.J. Simpson como cause célèbre do racismo institucional. O.J., ao contrário de Rodney King, era rico e influente. Achar que a Justiça foi feita em seu caso é cuspir no cadáver de Nicole e de todas as mulheres vítimas de violência doméstica.

Kesha chorando ao ouvir o veredito a favor de Dr. Luke.
Por coincidência, ontem uma imagem emblemática de como a Justiça ainda dorme em berço esplêndido no que diz respeito à violência contra mulheres ganhou o mundo. É a imagem de uma jovem chorando, desamparada, num banco da Suprema Corte de Nova York. Suas lágrimas são iguais às lágrimas da família Brown ao ouvir o veredito que inocentou O.J. Simpson da morte de Nicole Brown. São idênticas às lágrima de milhares de mulheres que não conseguem colocar seus abusadores - físicos, sexuais e psicológicos - atrás das grades devido ao machismo institucionalizado presente nas delegacias de polícia, promotorias e cortes de Justiça ao redor do mundo. A jovem da imagem é a cantora e compositora Kesha Sebert, de 28 anos de idade, mundialmente conhecida por hits como "Tik Tok" (2009), "We R Who We R" (2010) e "Die Young" (2012).

Kesha movia um processo civil contra o produtor musical Lukasz Gottwald (mais conhecido como Dr. Luke), seu empresário, a quem acusa de abuso sexual e terrorismo psicológico no ambiente de trabalho. Ela buscava romper o contrato que possui com Dr. Luke, segundo o qual ainda precisa produzir seis discos para a companhia dele, ligada à Sony Music Entertainment, segunda maior gravadora do mundo. O juiz afirmou que caso Kesha não consiga produzir provas contra Dr. Luke terá que cumprir o contrato de trabalho integralmente. Com o veredito, a Justiça americana deu um forte recado a todas as mulheres que são vítimas de abuso sexual no ambiente de trabalho: vocês terão que conviver com seus chefes abusadores. Do jeito que a "Justiça" caminha, tanto aqui quanto lá fora, as mulheres vão ter que mandar instalar câmeras em seus sutiãs para filmarem seus abusadores e provarem que a violência sexual no ambiente de trabalho é algo real. 

Além do absurdo de obrigar uma mulher a trabalhar com seu suposto abusador, a decisão representa um retrocesso ao desconsiderar a jurisprudência criada nos anos 1950 pela Justiça da Califórnia ao dar ganho de causa à atriz Olivia de Havilland, que à época movia um processo para quebrar seu contrato com a Warner Bros. A decisão garantiu uma maior liberdade artística aos atores, que passaram a poder escolher em quais filmes (de quaisquer estúdios) poderiam atuar. O movimento #FreeKesha pode parecer, à primeira vista, bobo e alienado, criado por fãs de uma cantora pop heterossexual, loira, branca e rica. No entanto, traz consigo questões como o direito mais do que legítimo da mulher de não querer trabalhar com seu abusador e a liberdade artística numa indústria que funciona mais ou menos do mesmo jeito desde os anos 1960; e que ficou ainda pior com o desaparecimento das pequenas gravadoras a partir dos anos 1980.

Nicole Brown Simpson (1959-1994).
Kesha é o símbolo da mulher ideal - branca, heterossexual, loira, magra, rica e sexy. Mas Nicole Brown também era e isso não impediu que O.J. Simpson abusasse dela ao ponto de degolá-la na porta de sua casa enquanto os filhos deles dormiam dentro da mesma. O machismo não respeita nem mesmo as mulheres que tem como ideal de feminilidade. O ódio à mulher é o que lhe move, não importa o que ela faça para se adequar a ele. E o Estado só observa. Em American Crime Story, a promotora está revoltada com o ocorrido: "O Estado falhou com Nicole". Ela havia denunciado o ex-companheiro por violência doméstica oito vezes! Isso explica porque muitas vítimas de abuso sexual sequer denunciam o estupro à polícia. A cantora Madonna, que foi estuprada assim que se mudou para Nova York no final dos anos 1970, foi questionada pelo apresentador Howard Stern porque não denunciou o crime à época. Ela respondeu: "Simplesmente não vale a pena. É muita humilhação".

Apesar da violência contra a mulher ser mais discutida hoje do que era no final dos anos 1970 ou em 1994, quando Nicole foi assassinada, o Estado ainda falha com as mulheres, independente de sua classe social, etnia ou orientação sexual. Kesha, mesmo fazendo parte do 1% mais rico dos americanos, viu seu caso ter o mesmo destino que o de 98% das mulheres que levam seus casos de estupro à Justiça. Ela chorou porque percebeu que para a Justiça americana a vida feminina tem menos valor do que a masculina. Isso ficou bastante claro com o veredito do caso O.J. Simpson, que foi analisado sob as lentes do racismo enquanto deveria ter sido discutido sob as lentes do machismo [Fato curioso: numa América cada vez mais dividida entre negros e brancos, onde a percepção de cada grupo sobre o Poder Judiciário varia muito, os dois grupos atualmente concordam que O.J. matou Nicole]. É assim em nossa cultura desde que às mulheres foi imputada a culpa pela expulsão do Jardim de Éden. Quando nada de concreto é feito para salvaguardar a integridade física e moral das mulheres que vivem em sociedades cuja moralidade deriva das religiões abraâmicas, só lhes resta rogar à Virgem Maria.

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