sexta-feira, 26 de fevereiro de 2016

Brasil: um museu de grandes novidades

Cada vez mais a história recente do Brasil lembra a da República de Weimar. Este é o nome não-oficial dado à Alemanha entre a queda da monarquia em 1918-19 e a ascensão de Adolf Hitler em 1933. Ontem foi divulgada uma nova pesquisa para a eleição presidencial de 2018. Nela, o ícone da extrema-direita Jair Bolsonaro (PP-RJ) aparece com intenção de voto maior do que Ciro Gomes (PDT-CE), que em tese seria um nome mais conhecido do eleitorado, tendo sido ministro dos governos Itamar Franco e Lula e duas vezes candidato a presidente. Venho alertando para o crescimento do candidato da extrema-direita já há algum tempo. Entretanto, a esquerda prefere subestimá-lo, tratando-o como uma piada, como um personagem extremista demais para ser eleito. Jean-Marie Le Pen também era visto como uma piada, extremista demais para ter alguma chance dentro do jogo tradicional da política francesa. Em 2002, no entanto, emergiu para o segundo turno da disputa presidencial francesa, chocando a centro-esquerda e a direita moderada, que volta e meia deixa suas diferenças de lado e forjam coalizões para evitar a vitória da Frente Nacional.

A luta fratricida entre SPD e KPD levou à
morte de Rosa Luxemburgo e inviabilizou
uma aliança entre os partidos até 2001.
Desde meados do ano passado digo que Bolsonaro deve ter cerca de 15% dos votos em 2018. Um percentual comparável àquele obtido por Adolf Hitler, que também era subestimado pela esquerda, em 1930. O grande percentual de votos obtido pelo Partido Nazista tirou o Partido Social Democrata (SPD) do poder. Criado no final do século XIX por simpatizantes de Karl Marx, o SPD promoveu reformas tímidas a favor dos trabalhadores sem reformar a estrutura do Estado alemão. Chegou a defender a monarquia quando viu que tinha chances reais de eleger o chanceler. Em 1918, no entanto, com a derrota alemã na Primeira Guerra Mundial, aliou-se a monarquistas revoltados e tomou o poder, proclamando a República na cidade de Weimar (daí o nome). Foi aí que surgiu o Partido Comunista (KPD), que defendia uma revolução mais profunda. Durante a revolução de 1919, o SPD se aliou aos anticomunistas para garantir a estabilidade do novo regime, o que levou ao assassinato de Rosa Luxemburgo. Isto inviabilizou uma aliança SPD-KPD por décadas. Em 2001 Klaus Wowereit, então prefeito-eleito de Berlim, forjou uma aliança do SPD com o Die Linke, sucessor do KPD.

O relativo sucesso dos nazistas na eleição de 1930 pode ser explicado por dois fatores: a incapacidade do SPD em lidar com a crise de 1929 e o fim dos ataques da imprensa ao gênio louco que era Adolf Hitler. Assim como no Brasil atual, o último governo de centro-esquerda da República de Weimar foi marcado pela falta de maioria no parlamento, o que obrigava o chanceler Hermann Müller a fazer concessões à direita e impossibilitava-o de enfrentar a crise econômica. Os direitistas, em especial ex-militares, culpavam uma conspiração de socialistas e minorias étnicas (judeus e polacos) pelos problemas econômicos do país. Discurso que começa a ganhar força aqui. A imprensa viu nesse discurso perigosíssimo a oportunidade de tirar o SPD do poder. Hitler forjou uma aliança com o magnata da imprensa e político Alfred Hugenberg, cujos jornais pararam de atacá-lo. Os nazistas passaram de 2,6% para 18,25% dos votos. Prevejo cenário semelhante em 2018: a mídia brasileira – tão oligopolizada quanto a alemã era – não atacará Bolsonaro porque ele é útil para seu plano de tirar o PT do poder. Não vai exaltá-lo, pois finge ser democrática, mas também não o atacará.

Prevejo também a esquerda mais radical do país culpando o PT pela ascensão da extrema-direita, assim como o KPD culpava o SPD pela ascensão do nazismo. Embora o PT nunca tenha perseguido e provocado a morte de dirigentes do PSOL, as divergências entre os dois partidos permanecem tão fortes quanto as de social-democratas e luxemburguistas. Assim como alguns no PSOL hoje falam do PT, os membros do KPD encaravam o SPD – e não o Partido Nazista – como o maior inimigo da classe trabalhadora. Entendo perfeitamente de onde vem essas críticas. O PT se apresenta como revolucionário no Horário Eleitoral e atua como o PSDB light no poder. Enganou a classe trabalhadora. Mas o próprio PSOL também está sendo vítima da encruzilhada anti-PT. O partido teve seu único prefeito, de Itaocara-RJ, cassado sem nenhum motivo legal aparente, assim como Franz von Papen depôs o governo de esquerda da Prússia para agradar os nazistas. E isso foi só o começo. Ninguém ficará a salvo da sanha anti-esquerdista. Nem mesmo Marina Silva, que se julga acima das ideologias. Em 2014 mesmo ela começou a ser atacada pela direita hidrófoba por ter pertencido ao PT até 2009. 

O atentado ao Reichstag, praticado pelos próprios nazistas
teve sua culpa atribuída ao KPD, o que justificou a aplicação
da cláusula anti-terrorismo da Constituição por Hitler.
Com a aprovação da mal-fadada lei "antiterrorismo" ficará ainda mais fácil criminalizar tanto o bloco PT/PCdoB quanto o PSOL. A Alemanha também reprimia duramente os "terroristas" (só os de esquerda, porém) durante a República de Weimar. Sua Constituição permitia a suspensão dos direitos individuais em situações que o próprio governo definia como sendo "de emergência". Foi esse dispositivo legal que permitiu a Hitler dar início a seu regime de exceção, tendo como justificativa o "atentado terrorista" no prédio do Reichstag, supostamente praticado por membros do KPD. Ele suspendeu direitos individuais e todos os partidos políticos valendo-se da própria ordem legal estabelecida. A lei aprovada no Congresso Nacional repete o dispositivo constitucional alemão e pode acabar sendo usada para fins absolutamente estranhos àqueles que o legislador imaginou ao criá-la. Enquanto isso, o PT tenta defender as concessões indefensáveis que Dilma Rousseff pratica para tentar se manter no poder e o PSOL, megalômano, crê ter musculatura o suficiente para reverter a guinada conservadora da sociedade sozinho.

No entanto, equivoca-se quem acha que a direita já estabelecida é a principal beneficiária do atual caos político. De maneira semelhante à Alemanha dos anos 1930, a direita parlamentar também perde espaço para a direita marginal. Mesmo que o PSDB consiga eleger o presidente em 2018, o partido vai se deteriorar no poder de forma muito mais rápida do que o PT, em especial se a crise econômica prevalecer. Os tucanos não vão conseguir "arrumar a economia" tão rápido quanto prometem e, como já provaram no passado, vão tentar fazê-lo às custas do povo, já irritado. Isso vai revoltar parte significativa de sua base eleitoral, que vai cair de bandeja nas mãos de Bolsonaro. É algo que a crise econômica mundial vem provocando nas principais economias do mundo: a descrença com os representantes da política tradicional ou, como preferem dizer alguns analistas políticos, "o fim do centro político". Tanto Donald Trump quanto Bernie Sanders, por exemplo, definem-se como políticos anti-establishment. É assim que os eleitores de Bolsonaro vêem seu "mito", como um outsider da política, embora ele já esteja no Congresso há 30 anos.

Seria o povo brasileiro os ratos de Hamelin?
Por tudo o que foi dito acima, dói conhecer a História. Aqueles que conhecem-na vêem os que não a conhecem – que são a grande maioria atualmente – repetindo-a sem poder fazer nada. Como convencer uma pessoa que sequer ouviu falar de Mein Kampf que ela está caindo no discurso de um flautista de Hamelin que vai conduzir a todos nós para o abismo? A sensação de impotência é enorme. Mesmo aqueles que presumivelmente conhecem a História repetem-na. As concessões de Dilma à direita para tentar agradar à elite que quer derrubá-la e criminalizar o PT também foram tentadas, sem êxito, pelo SPD, que com isso traiu por completo o ideal de seus fundadores e perdeu para sempre o apoio da classe trabalhadora. A recusa do PSOL em aliar-se estrategicamente com o PT para evitar a ascensão de um mal maior se assemelha à recusa do KPD em compor com o SPD por orientação da Comintern. Não é à toa que pipocam nas redes sociais, desde o ano passado, páginas antifascistas que têm como símbolo o círculo idealizado pelo SPD no crepúsculo da República de Weimar.

Às vezes sinto como se a História se repetisse num loop constante. "Eu vejo o futuro repetir o passado, eu vejo um museu de grandes novidades", já dizia o poeta. Espero, do fundo do meu coração, estar errado. Não sou nenhum cientista político, mas cada vez mais vejo o destino da República de Weimar se repetir aqui no Brasil. Até grupos monarquistas lutando contra a ordem democrática nós também temos! Em escala bem menor, é claro, mas mesmo assim temos. Sem falar na adesão ao discurso genocida por parte das próprias vítimas deste. Há hoje no Brasil negros apoiando a extrema-direita, assim como haviam judeus anticomunistas apoiando Hitler na Alemanha. Segundo eles, a esquerda os vê como vítimas enquanto a direita acredita em sua capacidade individual. O individualismo exacerbado, aliás, é uma característica do nazismo. O que importa é o que o indivíduo pode fazer pela sociedade e não o contrário. Sinto-me num filme de Fritz Lang. Vejo a ascensão do Dr. Mabuse através da hipnose da massa, disposta a renunciar à civilidade e adotar a violência sem questionamento. E, o pior de tudo, é que, como personagem coadjuvante, sinto que não posso fazer nada para evitar isso.

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