quinta-feira, 24 de setembro de 2015

A guerra civil brasileira

Eu entendo seu sofrimento, morador da orla de Copacabana. Afinal, também sou homem, cisgênero, branco, de classe média alta, com diploma de ensino superior e cristão no Brasil. Nossa vida realmente é muito sofrida!  
Adaptado de um comentário de um americano numa página do Facebook ironizando outro americano, islamofóbico.

Às vezes minha mente entra em curto-circuito com algumas informações. Recentemente isso aconteceu quando recebi a notícia de que jovens – brancos – do Rio de Janeiro estavam marcando, via WhatsApp, ataques a ônibus que trazem outros jovens – negros – para as praias mais famosas do mundo. Simultaneamente, no município vizinho de Niterói, pipocaram cartazes, imediatamente retirados pela prefeitura, de um grupo que afirma ser o capítulo local da Ku Klux Klan. Para quem não sabe, a KKK é um grupo formado por estadunidenses brancos e protestantes que perseguem violentamente as minorias sócio-políticas daquele país: negros, judeus, católicos, ateus, imigrantes e socialistas. O motivo para a escalada do fascismo à carioca seria o aumento dos arrastões nas praias do município, amplamente divulgados pela mídia comercial. Em Portugal, o discurso irresponsável da mídia ao noticiar um falso arrastão gerou uma onda xenófoba na sociedade. O caso é estudado nas faculdades de jornalismo como um exemplo do poder da mídia para reforçar preconceitos.

O fato concreto é que o Brasil está passando por uma guerra civil que se intensificou desde que a presidenta Dilma Rousseff, do outrora socialista Partido dos Trabalhadores, foi reeleita há cerca de um ano. Embora o PT seja mais semelhante a um partido europeu de centro-direita, ele é percebido, devido à demografia de seus eleitores, como uma ameaça à manutenção do status quo. Mesmo que Dilma tenha cedido ao Deus mercado e esteja governando seguindo a cartilha liberal de seu adversário, o barco fascista no qual os eleitores anti-PT mais fervorosos embarcaram não foi afundado. Pelo contrário, foi fortalecido por uma mídia e por uma oposição que deixou-se guiar por pupilos de um astrólogo que se diz filósofo e luta contra uma ameaça comunista inexistente na sociedade brasileira (o PT foi o partido que mais trouxe lucros aos bancos, alardeou Lula diversas vezes). É interessante para a mídia e para a oposição manter esse barco no mar da política brasileira como forma de pressionar a Dilma a governar para os ricos. Assim que ela hesita em tomar uma medida impopular, eles organizam e promovem atos pró-impeachment.

Agora que a presidenta enfim cedeu às pressões daqueles que nada produzem e vivem de roubar o patrimônio dos brasileiros, a Rede Globo, ela mesma alvo dos fascistas em tais manifestações, arrefeceu seus ânimos golpistas. No entanto, a mídia criou e alimentou por anos uma legião de fascistas que odeia todo mundo que não se parece com os membros da turba (um gari, negro, foi expulso de um protesto anti-Dilma acusado de ser petista). Essa turma não irá desaparecer tão cedo. De maneira semelhante, o principal partido de oposição, que ironicamente se chama Partido da Social Democracia Brasileira, na ânsia de ganhar a eleição presidencial após três derrotas sucessivas, atraiu para si o pior tipo de ser humano. Não estou generalizando. Há gente boa e ruim em todos os locais e partidos políticos não são exceção. Mas tenho razões – pessoais, inclusive – para acreditar que o eleitorado do PSDB caiu de nível desde 2010. Ao invés de apresentar propostas, o partido vale-se do ódio ao PT e aos que votam nele para tentar ganhar a presidência da República. Se chegar lá, seu eleitorado recém-conquistado exigirá do PSDB a exclusão daqueles identificados como petistas – negros, índios, LGBTs, mulheres emancipadas, etc.

Eu senti na pele o ódio ao eleitorado petista. Na véspera do segundo turno da eleição presidencial do ano passado, na madrugada de 25 para 26 de outubro, saí com um amigo, também gay. Fomos a uma boate e depois a uma lanchonete no centro da cidade. Foi então que tivemos a "brilhante" ideia de pegarmos um táxi na porta de outra boate. No caminho, parou um carro com rapazes – brancos – muito bem vestidos. Um deles, visivelmente com a consciência alterada por alguma droga, desceu com uma arma na mão e levou a carteira e o celular do meu amigo. Quando chegou minha vez, congelei e não consegui sequer colocar a mão no bolso. Aí ele viu que eu estava com um adesivo escrito "Comunidade LGBT apoia Dilma" no peito e me espancou. Levei uma coronhada no rosto e um chute que fraturou uma vértebra. Por um milagre ainda estou vivo, afinal de contas ele poderia muito bem ter dado um tiro na minha cara e fugido diante da minha recusa. Eu seria apenas mais uma vítima da guerra civil brasileira que silenciosamente extermina negros, índios e LGBTs todo santo dia. Quando penso que o PSDB se tornou representante de gente que faz isso, tenho muito medo.

A elite brasileira, como demonstra um vídeo de uma reportagem do final dos anos 1980 que viralizou essa semana, sempre existiu. No entanto, as novas tecnologias permitem aos fascistas coordenarem seus ataques contra aqueles que são encarados como ameaça a seus direitos (que não foram construídos, mas sim herdados), sejam eles índios Guarani-Kaiowá ou jovens de pele escura que querem curtir a praia de Copacabana ou Ipanema após trabalharem 44 horas por semana no morro. Uma fala que ouvi no meu primeiro ano na faculdade de jornalismo me marcou muito. Eliani Covem, professora e coordenadora do curso, disse algo como "temos que nos lembrar que, apesar da favela sempre ser mostrada como local de crimes, a maioria das pessoas que moram nela são honestas". Até então eu – e tenho até vergonha de admitir isso – tinha uma ideia lombrosiana de que a pessoa seria mais propensa para o crime devido ao local geográfico em que ela nasceu. Infelizmente, por uma série de fatores socialmente construídos, é assim que a maioria dos brasileiros pensa. 

As escolas privadas que aprovam quase todos seus alunos em vestibulares concorridíssimos ensinam a seus alunos tudo sobre a biologia humana, mas falham em ensinar o básico: que somos todos iguais, independente de onde nascemos. As emissoras de televisão, que pertencem a todos nós e são concedidas pelo Estado a empresários privados, mostram as favelas como antros do crime. É risível o tratamento dispensado a criminosos pobres e ricos. Ao cobrir os arrastões, os jovens negros são retratados pela mídia como "menores", mesmo as vítimas. Por outro lado, ao cobrir os linchamentos marcados por WhatsApp, a mídia se refere aos jovens brancos como "jovens", mesmo que eles estejam em flagrante conflito com a lei, que não permite ações paramilitares. Quando os filhos de figurões cariocas atropelaram e mataram pessoas, a mídia só faltou dizer que os carros de luxo deles foram atropelados por um ciclista e por um pedestre. A mídia promove um dualismo que nem sempre existe no mundo real, afinal o real é complexo e o virtual é simplificado. Dessa simplificação, nasce a ideia de que certos setores da sociedade são intrinsecamente ruins e devem ser extirpados.

O fascismo brasileiro, que alimenta a guerra civil invisível, surge nos pequenos comentários que por vezes deixamos passar batido. Começa na tentativa de eliminar o ritmo musical mais ouvido pelo povo e termina na tentativa de eliminar o próprio povo. Transforma o Brasil no campeão mundial de assassinatos de transhomossexuais e ativistas do campo e em vice-campeão de assassinatos de jovens negros. São os bodes expiatórios da guerra contra o povo. É comum as elites elegerem um bode expiatório para continuarem lucrando, sobretudo durante crises. Nos anos 1930, Hitler prometeu o enriquecimento dos alemães de classe média e alta através da expropriação das propriedades de judeus que, segundo ele, seriam os responsáveis por controlar a maior parte da riqueza nacional. Donald Trump pretende expulsar os imigrantes mexicanos que estariam roubando os empregos dos americanos, enquanto Marine Le Pen pretende se tornar a primeira presidenta da França valendo-se do medo dos imigrantes algerianos. Vale notar que mexicanos e algerianos estão mudando rapidamente a demografia de ambos os países, assim como a Era Lula mudou a demografia de shoppings, universidades e aeroportos.

Enquanto eu puder escrever, denunciarei as tentativas de calar a voz dos oprimidos. Embora homem, cisgênero, branco, de classe média alta, cristão e com ensino superior completo, como afirmei na epígrafe desse texto, também sou homossexual. E isso muda toda a minha percepção de mundo, fazendo-me identificar com os membros de outros grupos igualmente oprimidos. Creio ter sido isso que motivou a rebelião poética de Cazuza contra sua classe social. Assim como na época do poeta, os tempos atuais são duros, mas eu não tenho medo. Um dia os oprimidos perceberão que são maioria e, quando isso acontecer, não haverá grupo de WhatsApp, comentário de jornal ou textão do Facebook capaz de conter a verdadeira expressão popular do Brasil. É uma pena termos perdido um importante aliado nessa luta: o PT, que escolheu trilhar o caminho do SPD dos anos 1930, quando perdeu sua influência e seus votos para o Partido Nazista após ter capitulado para a direita. Tenho, no entanto, confiança na maturidade dos movimentos sociais, que cada vez mais se unem contra as tentativas de criminalização e extirpação dos oprimidos. Como afirma Kiko Nogueira, é preciso lutar contra essa loucura, mesmo que não dê em nada.

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