domingo, 29 de janeiro de 2017

A ópera-bufa do combate ao terrorismo

A "relação especial" entre Estados Unidos e Arábia Saudita
deve continuar durante o governo Trump.
Desde 2015 tenho dito e repito: qualquer iniciativa antiterrorista que não inclua sanções à Arábia Saudita é pura demagogia. Osama Bin Laden, um membro da elite saudita, fundou o grupo terrorista mais famoso do mundo — a al-Qaeda — em 1988. O bando visa instituir o salafismo como religião oficial dos países do Oriente Médio. O salafismo ou wahhabismo é uma vertente ultra-conservadora do sunismo que defende que os muçulmanos devam viver como os primeiros seguidores do profeta Maomé. Os salafistas são contra inovações posteriores do mundo islâmico, como a separação entre o Estado e a religião, peregrinações a mausoléus — o que eles consideram como idolatria — e o convívio entre os sexos. Trata-se da religião oficial da Arábia Saudita que, pasmem, pune a idolatria com pena de morte. Dito isso, não é nenhuma surpresa que 15 dos 19 jihadistas que sequestraram os quatro aviões que jogaram contra o Pentágono, o World Tarde Center e um campo na Pensilvânia em 11 de setembro de 2001 eram cidadãos sauditas.

Embora o governo da Arábia Saudita negue possuir qualquer relação com grupos terroristas salafistas, a al-Qaeda é financiada por bilionários daquele país, como os banqueiros Saleh Kamel e Sulaiman Abdul Aziz Al Rajhi e o ex-ministro do petróleo Ahmad Turki Yamani. Segundo um memorando de 2009 do Departamento de Estado dos Estados Unidos, vazado pelo WikiLeaks, a Arábia Saudita é a principal fonte de financiamento de grupos terroristas sunitas no mundo. Além da al-Qaeda, o país estaria financiando também outros grupos terroristas. Várias fontes, como o governo do Iraque, a revista The Atlantic, as emissoras de televisão BBC e NBC, o jornal The New York Times e o site de notícias Daily Beast acusam a elite ou o governo saudita de financiar também o Estado Islâmico do Iraque e do Levante, que também promove o jihadismo salafista. A Arábia Saudita exporta mais combatentes para este grupo do que qualquer outro país do mundo depois da Tunísia. Nas áreas controladas pelo grupo, professores lecionam com livros didáticos sauditas.

Estado Islâmico e Arábia Saudita defendem a mesma versão do Islã.
Num outro documento vazado pelo WikiLeaks — um e-mail de agosto de 2014 direcionado a John Podesta, conselheiro do então presidente Barack Obama —, a ex-secretária de Estado Hillary Clinton afirma que tanto a Arábia Saudita quanto o Qatar estão "fornecendo apoio financeiro e logístico clandestino ao ISIS e outros grupos sunitas radicais na região". É questionável, no entanto, se ela faria algo para conter a situação que denuncia no e-mail caso estivesse hoje na Casa Branca. A Fundação Clinton já recebeu doação dos governos de ambos os países. Por este motivo, Clinton foi criticada pelo senador Bernie Sanders durante as primárias do Partido Democrata. Sanders disse ter um problema com uma secretária de Estado cuja fundação recebe milhões de dólares de governos estrangeiros que são ditaduras. Até mesmo o New York Times, que declarou apoio à candidata, afirmou em um editorial que havia razões para acreditar que, embora não há evidências de que Clinton tenha favorecido os doadores de sua fundação, havia um conflito de interesses no caso.

Seu oponente, o agora presidente Donald Trump, também acusou-a de conflito de interesses durante um dos debates presidenciais. Segundo ele, ela deveria devolver os US$ 25 milhões que a Arábia Saudita doou à fundação porque "essas pessoas tratam as mulheres horrivelmente". Noutra ocasião, no entanto, disse que gostava muito dos sauditas, pois eles estavam entre seus principais clientes no ramo imobiliário. Só que ele afirmou também que, uma vez eleito, tomaria medidas enérgicas contra o terrorismo islâmico. Segundo o jornal New York Daily News, no entanto, Trump possui negócios no ramo hoteleiro da Arábia Saudita, país que não foi afetado por seu decreto presidencial que baniu a entrada nos Estados Unidos de pessoas oriundas de sete países do mundo muçulmano — Irã, Iraque, Síria, Iêmen e os africanos Líbia, Somália e Sudão. Entre 1975 e 2015, 2.369 norte-americanos foram mortos em solo estadunidense por terroristas sauditas e, ainda assim, os sauditas podem obter visto e entrar nos Estados Unidos assim que quiserem. 

Os ignorantes confundem vítimas e perpetradores do terrorismo.
É para eles que Trump toca sua ópera-bufa sinistra.
Ao invés de punir quem espalha o fundamentalismo islâmico que gera o terrorismo, Trump vai punir as vítimas do terrorismo. Banir pessoas que, na maior parte dos casos, são sobreviventes de guerra e perseguidos políticos buscando refúgio noutro país, além de ser um tremendo descaso do ponto de vista humanitário, vai ter um efeito praticamente nulo na luta contra o terrorismo. Isso sem falar que foram os Estados Unidos e, mais especificamente, o partido de Donald Trump que transformaram o Iraque num campo fértil para as ações do Estado Islâmico. Ao vetar a entrada de sírios e iraquianos e não de sauditas, Trump demonstra que seu discurso não passa de pura balela. Uma demagogia para aqueles que temem o terrorismo islâmico sem entender muito bem como ele opera. E que nem buscam entender, pois parte significativa do medo vem justamente da ignorância. Em termos de combate ao terrorismo, Trump toca uma ópera-bufa sombria para uma plateia de ignorantes — lá nos Estados Unidos, mas também aqui no Brasil — aplaudir.

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