quarta-feira, 6 de janeiro de 2016

Brasil, a sete passos da Idade Média

Todo cidadão minimamente consciente já sabe que em 2015 o Brasil regrediu diversos anos na garantia de direitos sociais às populações historicamente oprimidas. Após a eleição de um evangélico fanático ao posto de presidente do Congresso Nacional o Brasil se viu refém da agenda dos deputados espúrios que elegeram-no, principalmente fazendeiros, pastores e policiais. Eduardo Cunha (PMDB-RJ) era o queridinho da grande mídia enquanto, por um lado, atacava os direitos de trabalhadores e, por outro, ameaçava mandar a presidente Dilma Rousseff para casa antes do término oficial do mandato para o qual ela fora legitimamente re-eleita. Só que sua situação se complicou bastante após o surgimento de denúncias ―por parte da procuradoria suíça― de que ele estava usando o paraíso fiscal para lavar dinheiro desviado da Petrobrás. Como consequência, atualmente mais pessoas apoiam o afastamento de Cunha (80%) do que de Dilma (60%). Entretanto, nada indica que a luz ressurgirá no Congresso caso Cunha seja afastado. As trevas vieram para ficar. E o que é pior: têm a legitimidade do voto popular, conquistado nas eleições de 2014.

Em 2015 foram sete os projetos aprovados pelos deputados que representam o retrocesso de direitos para milhões de brasileiros. Seriam oito, caso a bancada governista não tivesse conseguido reverter o corte de verbas do Programa Bolsa Família, que jogaria 8 milhões de pessoas de volta na miséria. O Brasil vai na contramão dos países mais desenvolvidos do mundo. Enquanto os brasileiros se deixam levar por preconceitos e soluções milagrosas para problemas complexos, outros povos analisam racionalmente seus problemas. Em 2015 a Suprema Corte dos EUA decidiu reconhecer todos os casamentos entre pessoas do mesmo sexo realizados no país. O Canadá, preocupado com o crescimento da desigualdade social, elegeu um primeiro-ministro de esquerda ―filho do popularíssimo Pierre Trudeau― que propôs aumentar o imposto dos mais ricos e diminuir o dos mais pobres. Os finlandeses elegeram o centrista Juha Sipilä, que prometeu pagar uma renda mínima ―uma espécie de Bolsa Família― a todos os cidadãos; esta proposta é apoiada por 7 em cada 10 finlandeses. EUA, Canadá e Finlândia possuem índices de desenvolvimento humanos muito superiores ao do Brasil. O Canadá inclusive liderou a lista entre 1992 e 2000.

Na permissão ao aborto, é clara a divisão norte-sul do mundo.
Mas vamos deixar a discussão para depois. Vamos primeiro à lista das sete decisões tomadas pelos deputados brasileiros em 2015 que distanciam nosso Brasil dos países mais desenvolvidos do mundo e colocam-no um pouquinho mais perto da Idade Média:

  1. PEC 99/11, de autoria de João Campos (PSDB-GO): Aprovada na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ), permite que entidades religiosas entrem com ações de inconstitucionalidade no Supremo Tribunal Federal. Isso dá a igrejas, entidades privadas, o poder de questionar leis e jurisprudências, igualando-as à presidência da República, à Procuradoria Geral da República, aos governos de estados, às mesas da Câmara, do Senado e das Assembleias Legislativas, aos partidos políticos e ao Conselho Federal da OAB. Se a proposta for aprovada no plenário da Câmara, a Igreja Universal poderá questionar a validade do seu casamento. É a maior afronta ao Estado laico desde o advento da Constituição de 1988.
  2. PL 5069/15, de autoria de Eduardo Cunha (PMDB-RJ): Aprovado na CCJ, aumenta as restrições ao aborto, um direito previsto para casos de estupro e risco à vida da mulher desde 1940. O texto da lei ainda permite aos profissionais de saúde se recusar "a aconselhar, receitar ou administrar procedimentos ou medicamentos que considerem abortivos". Isso significa que o agente de saúde que entender que a pílula do dia seguinte provoca aborto pode se recusar a oferecê-la à paciente, mesmo aquela que tenha sido vítima de estupro. Em 30 de outubro, cerca de 15 mil mulheres protestaram nas ruas de São Paulo contra a medida que dificulta à mulher vítima de estupro o acesso ao atendimento-padrão nesses casos.
  3. PL 6583/13, de autoria de Anderson Ferreira (PR-PE): Aprovado numa comissão da Câmara no fim de setembro e mais conhecido como Estatuto da Família prevê a definição de entidade familiar como a "união entre um homem e uma mulher". Deve excluir do acesso a planos de saúde, entre outros serviços, cerca de 60 mil famílias formadas por pessoas do mesmo sexo, assim como famílias de arranjos anaparentais ―quando não há relação direta de descendência entre pais e filhos, como tios que cuidam de sobrinhos ou irmãos mais velhos que cuidam de irmãos mais novos.
  4. PEC 171/93, de autoria de Benedito Domingues (PP-DF): Aprovada pelo plenário da Câmara, a proposta reduz a maioridade penal de 18 para 16 anos nos casos de crimes hediondos. Não há qualquer evidência científica de que a proposta vá afetar os índices da violência. Por outro lado, especialistas em infância e juventude alertam que os menores podem ser vítimas de abusos e aliciamento por organizações criminosas que comandam os presídios estaduais.
  5. PL 3722/12, de autoria de Rogério Peninha Mendonça (PMDB-SC): Aprovada por uma comissão especial, a proposta revoga o Estatuto do Desarmamento. Nomeado de Estatuto de Controle de Armas de Fogo, o PL reduz de 25 para 21 anos a idade mínima para compra de revólveres e pistolas, elimina a taxa que os compradores de arma precisam pagar e amplia de três para dez anos o prazo para renovar o porte de armas. A proposta também autoriza diversos profissionais que não trabalham com segurança ―como fazendeiros― a ter acesso a armas. A tendência é que as milícias cresçam, assim como o número de assassinatos, que já é alto. Segundo pesquisa da UFRJ, o Estatuto do Desarmamento evitou mais de 121 mil mortes no Brasil de 2004 a 2012.
  6. PEC 215/00, de autoria de Almir Sá (PR/RR): Aprovada pela CCJ, transfere do Executivo para o Legislativo a atribuição de remarcar terras indígenas ou quilombolas. Prevê o pagamento de indenizações retroativas ―e em dinheiro!― pelas terras expropriadas para a criação de reservas indígenas/quilombolas. Isso criaria um passível impagável para a União. Alem disso, estabelece como marco temporal de ocupação das terras o dia 5 de outubro de 1988, o que significa que os indígenas ou quilombolas não terão direito à terra se não a ocupavam em 1988.
  7. PL 4330/04, de autoria de Sandro Mabel (PMDB-GO): Aprovado em plenário, o projeto revoga vários dispositivos da Consolidação das Leis Trabalhistas, a CLT, um dos maiores legados de Getúlio Vargas para a sociedade brasileira. Os trabalhadores terceirizados recebem salários 25% menores do que os trabalhadores celetistas, permanecem no emprego pela metade do tempo e cumprem jornadas de trabalho maiores ―ou seja, mais de 44 horas semanais. 

FHC acabou com Vargas na economia;
Cunha, na sociedade.
Quando Fernando Henrique Cardoso assumiu a presidência do Brasil em 1995 e levou a cabo a privatização de empresas criadas por Getúlio Vargas, ele sentenciou: "a era Vargas acabou". Mas nem mesmo FHC, ícone maior da direita nativa, teve a coragem de mexer nos direitos dos trabalhadores ou naquilo que o Código Penal de 1940 previa sobre o aborto. Ele é o retrato de uma direita que o seu partido, o PSDB, preferiu não ser. É um intelectual, um homem polido. Desde as últimas eleições, no entanto, o PSDB preferiu que sua cara não mais seriam os intelectuais: seria a escória da direita. Gente como o já supracitado Eduardo Cunha ou o deputado-pastor João Campos. Campos, além de propôr o fim da laicidade com a PEC 99 ―que prevê que uma força estranha á organização do Estado (as igrejas) questione leis e decisões do STF―, quer sustar uma decisão interna do Conselho Federal de Psicologia que proíbe os psicoterapeutas de fazerem a chamada terapia de reorientação sexual com seus pacientes, ou seja, curar gays. Se FHC pôs fim aos pilares econômicos da era Vargas, o neo-PSDB parece interessado em pôr fim aos pilares sociais da mesma.

O fato é que, como bem observou Rodrigo Martins, repórter da Carta Capital, o Brasil "até hoje não entendeu o sentido da Revolução Francesa". Liberdade significa que todos os cidadãos devem ser livres para viver de maneira lícita como quiserem, sem a interferência do Estado. Igualdade significa que todos os cidadãos são iguais, independente de serem indígenas, quilombolas, jovens em conflito com a lei, homossexuais ou irreligiosos. Fraternidade significa que os cidadãos devem ajudar uns aos outros, com enfoque especial aos mais vulneráveis, na construção de uma sociedade mais justa. O que vemos no Brasil atual é a completa negação desses valores. Vemos evangélicos que querem se tornar supercidadãos, com poder de questionar as leis, algo que ateus, agnósticos e irreligiosos não poderão fazer. Vemos a completa subjugação da mulher aos preceitos religiosos (minoritários na sociedade) seguidos por Eduardo Cunha ―que no entanto não segue aquele mandamento "não roubarás". Vemos a negação de gays e lésbicas ―e até mesmo irmãos mais velhos e tios― do conceito de "pai" e "mãe". Vemos a negação da recuperação a jovens que cometem crimes.

Ainda não derrubamos a Bastilha, mas julgamos ser possível
alcançar o nível de desenvolvimento social da França.
Na contramão dos Estados Unidos, que começa a debater o controle mais rígido de armas, queremos ainda mais armas e punições ainda mais severas para pequenos criminosos (os de colarinho-branco parecem não incomodar tanto). Na nossa vã ingenuidade, achamos que os problemas sociais podem ser resolvidos na base da bala e da tortura. Se resolvessem, os regimes ditatoriais da África e da Ásia ―de esquerda e de direita― seriam verdadeiros paraísos na Terra. E a Inglaterra, país onde é dificílimo conseguir uma arma, seria um caos. Da mesma forma, achamos que vamos resolver o conflito entre homens brancos e indígenas com o uso de força bruta. O Brasil é o país que mais mata indígenas no mundo e mesmo assim os povos originais não cansaram de lutar pelas terras que são, há um milênio, deles. Por fim, os deputados que se dizem tão preocupados com o "homem de bem" quer tirar dele seu sustento. Enquanto eles recebem todos os direitos possíveis para trabalhar de terça a sexta-feira, querem aprovar um projeto de lei que não só vai reduzir o rendimento médio dos trabalhadores como os farão trabalhar ainda mais.

O Brasil sonha em ficar rico elegendo deputados do ancien régime. Sonhamos com o nível de desenvolvimento que só o Iluminismo é capaz de promover e, ainda assim, não tomamos cuidado para não elegermos os representantes das trevas. É impossível perseguir o desenvolvimento flertando com o atraso. Alguém realmente acredita que é possível conter a desigualdade social com a criminalização da pobreza? Alguém realmente acha que se diminui a taxa de homicídio colocando alguns jovens na cadeia para "servir de exemplo" e liberando indiscriminadamente o porte de armas de fogo? Assim fosse, o sul dos Estados Unidos seria maravilhoso, com suas armas e presos sendo executados para "servir de exemplo" para outros criminosos. Não se resolve os problemas sociais à força da bala ou da lei. Conforme Jesus disse certa vez, pobres e sofredores sempre existirão. Não é fingindo que eles não existem que vamos nos tornar uma sociedade melhor, onde o seu filho pode andar com o iPhone na rua sem medo de ser assaltado. Ao virarmos as costas para eles, condenamos nossa nação inteira.

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