domingo, 12 de junho de 2016

Dilma, Isabel e os golpes machistas

O governo ilegítimo de Michel Temer começou com um recado claro às mulheres, de que elas não são dignas de ocuparem cargos em primeiro escalão na administração federal. Pouco tempo depois, foram anunciados retrocessos no que diz respeito à saúde reprodutiva das brasileiras. A tese de que o golpe de Estado havia sido — além de reacionário e neoliberal — machista já havia sido apresentada por mim antes mesmo de sua consolidação. Não se trata, porém, do primeiro golpe de Estado contra uma governante do sexo feminino na história do Brasil. Desde que tronou-se independente, em 1822, nosso país foi governado por apenas duas mulheres: a princesa Isabel e a presidenta Dilma Rousseff. Embora nunca tenha assumido o trono de facto, Isabel governou o país em três ocasiões (18711872, 18761877 e 18871888), durante a ausência de seu pai. Na última delas, em maio de 1888, assinou a Lei Áurea. Mais tarde foi revelado pela revista Nossa História que Isabel planejava indenizar os ex-escravos e fazer a Reforma Agrária após a morte iminente de seu pai.

Quando D. Pedro II retorna ao Brasil, no entanto, vê uma conspiração dos fazendeiros com os militares para derrubar-lhe. Tenta arrefecer os ânimos dos latifundiários com empréstimos em bancos estatais, mas foi deposto um ano mais tarde, em 15 de novembro de 1889. O golpe de Estado era, sobretudo, direcionado à princesa Isabel, uma vez que D. Pedro II estava com a saúde frágil e faleceu dois anos após o motim contra seu Império. De certa forma, pode-se dizer que a República brasileira se consolidou através de um ‪‎golpe contra uma mulher, Os machões de 1889 não aceitavam receber ordens de uma mulher. Segundo Roderick Barman, autor de Citizen Emperor: Pedro II and the Making of Brazil, 1825–1891, "a resistência a aceitar uma mulher governante era forte na classe política. Apesar da Constituição permitir a sucessão feminina ao trono, o Brasil ainda era um país bastante tradicional, e apenas um sucessor masculino era percebido como capaz de ser um Chefe de Estado". Isto é verdade quando se analisa o que era publicado na imprensa da época.

Em julho de 1887 o jornal O Mequetrefe publicou uma charge de Isabel com uma coroa e cuidando de assuntos domésticos, dando a entender que ela não teria tempo para lidar com ambos os aspectos de sua vida. Conforme escreve Augusto Mattos, "a intenção era pôr em dúvida sua capacidade de governança. E mais: sutilmente, o jornal questionava a presença de mulheres em assuntos de âmbito público, postura bastante comum na época". Além de reforçar a visão de que as mulheres não são feitas para governar, a imprensa sustentava a visão de que Isabel não entendia das questões de Estado e que, no trono, seria mero joguete de seu marido, o conde Gaston d'Eu, que seria um espião do governo francês no Brasil. Em sua edição de 5 de junho de 1888 o jornal O Pharol escreveu que "ela faz o que o marido quer e não o que é desejo do povo; faz mais — afronta os interesses do povo para afagar os desejos do marido". Para Mattos, "o artigo busca desqualificar D. Isabel a partir de sua 'frágil condição feminina'".

Isabel também foi acusada de ser inapta
às funções do Estado por ser mulher.
A elite econômica do Brasil se ressentia com o fato de que a futura Imperatriz aboliu a escravidão. Segundo Barman, "os fazendeiros consideraram a abolição como confisco de propriedade privada". Detentores de grande poder político, econômico e social, valeram-se da visão vigente na sociedade da época, de que as mulheres deveriam submissas, recatadas e do lar, para fomentar o apoio ao golpe militar de 1889, que inaugurou uma ditadura de marechais que perdurou até 1894. Não foi à toa que, para tentar convencer a população a derrubar Dilma, a revista Veja valeu-se da mesma visão: à mulher está reservado o papel de "bela, recatada e do lar", enquanto cabe a seu marido tratar de assuntos do Estado. Em 1889, assim como em 1964 e também em 2016, a população não foi convidada a opinar sobre seu próprio destino. Assim como no período atual — em que apenas 8% prefeririam o governo imposto (Michel Temer) —, em 1889 a vasta maioria dos brasileiros eram contra a saída que lhes foi imposta.

Creio que, para além do revanchismo, as elites derrubaram o regime vigente até então para evitar novas reformas na estrutura social do Brasil. A "canetada" da princesa Isabel tirou dos fazendeiros, da noite para o dia, cerca de 720 mil trabalhadores braçais, obrigando-os a substitui-los por mão-de-obra remunerada. Quem não garantiria que futuras "canetadas" da princesa não ceifariam ainda mais privilégios deles (e, segundo a revista Nossa História, ela planejava fazer isso). Entretanto, Isabel parece convicta na defesa da reforma que promoveu. Um dia após o golpe de Estado, ela escreveu em seu diário: "Se a abolição é a causa disto, eu não me arrependo; eu considero valer a pena perder o trono por ela". Eis um outro ponto no qual o golpe atual revela-se profundamente semelhante àquele de 1889. Lula e Dilma promoveram reformas que, embora tímidas, mexeram nas estruturas da sociedade brasileira e desagradaram as elites nacionais. É preciso retirá-los do poder antes que essas reformas se consolidem e também que outras apareçam. 

É disso que se trata o governo Temer. Desmontar o modesto Estado de assistência social criado pelos petistas. Limitar o acesso à universidade, aos cursos técnicos, ao Bolsa Família, e ao crédito empresarial e habitacional, desmantelar o Sistema Único de Saúde, desobrigar o Estado de investir em saúde e educação, tudo isso sobre o pretexto de enxugar as contas do governo — enxugamento que, no entanto, não veta  a criação de 14 mil cargos federais. Se o que fez a elite do final do século XIX apoiar a queda da monarquia foi a abolição, o que fez a elite atual apoiar o golpe contra Dilma foi algo quase imperceptível por nós, reles mortais. A partir de 2011 a presidenta, que segue a escola econômica desenvolvimentista, promoveu uma queda histórica da taxa básica de juros — que atingiu 7,25% entre outubro de 2012 e março de 2013. Sua intenção era tornar o mercado especulativo menos atrativo e, assim, fazer com que aumentassem os investimentos na indústria nacional. Atraiu a ira do mercado financeiro, que tornou-a persona non grata para sempre, mesmo se depois ela tentou fazer as pazes através da nomeação de Joaquim Levy (Bradesco), como ministro da Fazenda.

A classe média, por sua vez, começou a se indispor com Dilma assim que o governo dela aprovou a PEC das domésticas, que regularizou uma situação de trabalho precária — e análoga àquela dos escravos que serviam à Casa Grande — num país onde a evolução social ocorre de maneira sempre muito lenta. De certa forma, a presidenta concluiu uma reforma que a princesa iniciou, libertando as amas-de-leite e as mucamas da servidão e dando-lhes a dignidade que sempre lhes foi negada por aqueles de pele mais clara. No final do mesmo ano, a presidenta decidiu trazer médicos cubanos (quase todos negros) ao país para atuar nas regiões (quase todas negras) nas quais os médicos brasileiros (quase todos brancos), formados em universidades mantidas com os impostos pagos por todos nós (brancos e negros), se recusam em atuar. Foi então que começou a se tornar aceitável criticar Dilma pelo simples fato dela ser uma governante mulher. No ano seguinte, um bilhão de telespectadores viam a elite brasileira mandar uma senhora de 67 anos tomar no cu.

Se as críticas à princesa Isabel eram mais contidas, não eram nem um pouco menos machistas do que aquelas sofridas por Dilma. Em artigo publicado em 4 de dezembro de 1887, o jornal Gazeta Nacional busca desqualificar a futura Imperatriz como portadora de uma "frágil condição feminina" que seria incompatível com o exercício do poder. Qualquer semelhança com a capa da Istoé denunciando as "explosões nervosas da presidente" — algo que no macho Temer foi ressaltado como demonstração necessária de força — como incompatíveis com o exercício do poder não é mera coincidência. Tanto Isabel quanto Dilma foram vítimas de golpes de Estado onde o machismo foi uma força importante de desestabilização do regime que elas, mulheres, representavam. Lembro-me bem de um dos programas da campanha eleitoral de Dilma em 2010. Foram relembradas uma das grandes personagens femininas da história do Brasil. Uma delas era justamente a princesa Isabel. Por ser republicano e eleitor de Dilma, a comparação com um ícone do monarquismo me incomodou. No entanto, faz cada vez mais sentido a analogia entre ambas.

Até quando a mídia vai criticar mandatárias por causa de sua
condição feminina? Uma características vista como boas em
machos como Temer é apontadas como defeito em Dilma.
Ao ser entrevistada por Mariana Godoy em programa exibido pela RedeTV! na última sexta-feira à noite, Dilma disse que suas agruras são bem piores do que as de outros presidentes. "É pior porque sou mulher", alfinetou a presidenta deposta, numa resposta interessantíssima da entrevista que a entrevistadora não procurou desenvolver. O problema de Dilma e de Isabel não é terem sido governantes mulheres. O problema delas foi terem sido mulheres reformadoras. Ao forçar a renúncia do Barão de Cotegipe do Conselho dos Ministros e substituí-lo pelo abolicionista João Alfredo, a princesa mudou de maneira irrevogável a nossa história. De maneira semelhante, Dilma concedeu direitos irrevogáveis às domésticas. Não é verdade que a classe dominante do Brasil não convive muito bem com mulheres em posição de comando. O que ela não aceita são mulheres que — ao contrário de Yeda Crusius — mexam em suas estruturas arcaicas. Elas dão mau exemplo para as demais mulheres. Precisam ser combatidas. Não é à toa que o ideal de mulher "submissa, recatada e do lar" voltou à tona agora, 130 anos depois de sua primeira aparição na imprensa brasileira.

Embora ainda permaneça nebuloso se Isabel ambicionava governar o Brasil ou se seu suposto desinteresse pela política é uma construção historiográfica dos vencedores da disputa pelo Estado, a outra única vez em que o país teve uma chefa de Estado ela foi deposta antes mesmo de assumir o cargo de facto graças, em parte, a uma extensiva campanha machista de seus opositores. Recordam-se quando circulava pela rede um meme sexista que objetificava a esposa do então candidato à presidência Aécio Neves, comparando-a à presidenta Dilma e dizendo que deveríamos votar no tucano para que o Palácio da Alvorada fosse novamente habitado por uma mulher bonita? Pois bem, segundo Roderick J. Barman, "'aquela medonha condessa d’Eu' foi o comentário de um observador, em 1891", dois anos após o primeiro golpe que rompeu a ordem constitucional do Brasil. Não sei porque achamos que a história seria diferente quando outra mulher tivesse a oportunidade de retomar o legado reformista — interrompido pelos machões — de Isabel.

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