domingo, 26 de junho de 2016

O Brexit e a falência da esquerda entreguista

De 1979 a 1997, o Reino Unido ficou sob o comando do Partido Conservador. Primeiramente sob Margaret Thatcher (1979—1990) e, depois, sob John Major (1990—1997). A ascensão dos conservadores, que propunham uma agenda econômica até então inédita no país, o neoliberalismo, deveu-se sobretudo devido à crise do petróleo e da queda das bolsas de valores entre 1973 e 1974. A Grã-Bretanha desenvolveu um robusto Estado de bem-estar social no pós-Guerra que mostrava-se instável em tempos de crise. Assim sendo, os conservadores foram tirados do poder em março de 1974. Os trabalhistas lideraram o país numa aliança com nacionalistas escoceses até o final da década sob recessão e tentando implementar um programa de austeridade. O crescimento econômico era inviabilizado pela alta do desemprego e uma inflação que excedia os 10% ao ano. Em 1976, o Reino Unido pediu um empréstimo de £2,3 bilhões do Fundo Monetário Internacional (FMI). Em contrapartida, o governo deveria implementar um programa de cortes de gastos públicos, o que gerou um ciclo vicioso na economia local. Após uma série de greves no setor público em março de 1979, o então primeiro-ministro perdeu uma votação no Parlamento e novas eleições foram convocadas. Em maio daquele ano, Thatcher foi eleita primeira-ministra, a primeira chefa de governo de uma nação europeia.

Blair tornou o Partido Trabalhista palatável para os eleitores
de Thatcher nos anos 1990.
O programa de Thatcher era, basicamente, minimizar a influência do Estado sobre a economia, através de um robusto programa de privatizações, corte de impostos e reformas nas leis trabalhistas. Inicialmente a economia reagiu mal, caindo 6%, mas o crescimento foi de 5% em seu pico em 1988, um dos maiores da Europa. As privatizações geraram um aumento significativo no desemprego. Fábricas e minas de carvão que não eram viáveis foram fechadas, em especial na região Norte do país, onde ainda hoje os trabalhistas conseguem a maioria de seus assentos no Parlamento. Até o final da década de 1980, no entanto, o desemprego havia caído para menos de 1,6 milhão de pessoas. Em 1990, uma nova recessão global levou à queda do PIB em 8% e à renúncia de Thatcher. O desemprego voltou a crescer no período 1990—1993. Sob Major, menos liberalizante que sua antecessora, a recuperação econômica foi extremamente forte e, ao contrário do que ocorreu nos anos 1980, relativamente rápida. Apesar disso, os conservadores perderam a eleição de 1997 para os trabalhistas, então liderados por um jovem e ambicioso político chamado Tony Blair. Nos dezoito anos em que o Partido Trabalhista compôs a oposição muita coisa mudou no cenário global. A URSS se desintegrou e a globalização era uma realidade cada vez maior. Sob esse contexto, diversos teóricos propuseram o fim da divisão entre esquerda e direita, pelo menos na economia.

O sociólogo Anthony Giddens criou o termo "terceira via", que definia como uma síntese entre o capitalismo e o socialismo. Em termos mais claros: uma síntese entre uma política econômica thatcherista e uma política social trabalhista. Sua filosofia política inspirou a criação do movimento New Labour, que visava construir um partido político de esquerda para o século XXI. Embora num primeiro momento a política de Blair de abandonar a política trabalhista de propriedade pública dos meios de produção tenha desenvolvido o Reino Unido, sobretudo a partir de investimentos estrangeiros, o período de bonança acabou de repente em 2008 com a eclosão da crise financeira global. Bancos entraram em colapso e tiveram de ser nacionalizados pelo governo. O desemprego praticamente dobrou em 20 meses. Blair renunciou e foi precedido no cargo de primeiro-ministro por seu protégé Gordon Brown, que liderou o Partido Trabalhista durante as eleições de 2010, quando obteve o pior resultado eleitoral desde 1983. David Cameron, após entrar num acordo com o centrista Partido Liberal Democrata, formou um governo de coalizão que cortou cerca de um milhão de empregos no setor público. A desvalorização da libra continuou e, em maio de 2013, foi revelado que entre 2005 e 2011 o Reino Unido caiu do 5° para o 12° lugar entre os países de maior renda per capita.

Nesse cenário, os trabalhistas tinham tudo para eleger um governo. Lideravam as pesquisas há um bom tempo já. Entretanto, colocaram-se numa armadilha ao apoiar a permanência da Escócia na União. Até a década de 1920, o Partido Trabalhista era favorável à independência escocesa, mas abandou tal posição. Como resultado, surgiu na esquerda o Partido Nacional da Escócia (SNP), que começou a se destacar nas eleições na década de 1960. A aliança entre trabalhistas e nacionalistas escoceses de 1974 até 1979 resultou na devolução de vários poderes — sistema judiciário, polícia, bombeiros, saúde, educação, etc. — para o governo da Escócia. Em 2014 o governo do SNP na Escócia realizou um referendo sobre a independência da região e, apesar do resultado favorável pela permanência no Reino Unido, aumentou a visibilidade da líder do partido e chefa do Executivo local, Nicola Sturgeon. Os trabalhistas, por sua vez, ao participarem de debates televisivos contra a independência escocesa, imediatamente indispuseram-se com pelo menos 45% dos habitantes locais, que votaram a favor da secessão. Deveriam ter mantido a neutralidade, uma vez que sua derrota na eleição de 2008 só não foi mais desastrosa graças à Escócia. Seja por buscar uma conciliação impossível entre capital e trabalho, seja por adotar o thatcherismo em suas feições econômicas e até mesmo imperialista (com a invasão anglo-americana do Iraque), o partido se descolou da realidade daqueles que diz representar.

Jeremy Corbyn lidera o Partido Trabalhista há 9 meses e tem
sido alvo dos centristas do New Labour.
Após mais uma derrota eleitoral, causada em parte por sua decisão desastrosa de apoiar a permanência da Escócia na União, o que deu ao SNP sua melhor performance da História, o Partido Trabalhista realizou novas eleições internas. Cansados da distância entre o partido e a realidade, seus eleitores e filiados decidiram colocar o esquerdista Jeremy Corbyn na liderança do Partido Trabalhista no final do ano passado, pondo fim a duas décadas da política New Labour de aproximação com o liberalismo econômico. No entanto, Corbyn ainda precisa lidar com os entreguistas dentro do partido. Hoje mesmo viu-se obrigado a demitir do Governo Paralelo o Secretário Paralelo de Relações Exteriores, Hilary Benn (que foi Secretário de Comércio Exterior de Tony Blair), acusado de fazer lobby por sua saída. Corbyn, que no passado manifestou posições eurocéticas, foi criticado pelos membros do New Labour por sua suposta frouxidão em fazer campanha pela permanência do Reino Unido na União Europeia. Mas será que o Comitê Executivo Nacional está certo em conceder apoio à permanência da nação na União Europeia? Esta posição não parece ser unanimidade entre os eleitores do partido. Deveriam deixar de ser condescendentes e ouvir os trabalhadores que diz representar. Quando se compara os resultados das eleições gerais de 2015 com os resultados do referendo verifica-se que, com exceção de Londres, todos os redutos trabalhistas votaram a favor do chamado "Brexit".

As melhores performances eleitorais dos trabalhistas deram-se, por ordem, nas seguintes regiões: Nordeste da Inglaterra (90% dos assentos), Noroeste da Inglaterra (68%), País de Gales (62,5%), Londres (61,6%) e Yorkshire & Humber (61,1%). Apenas em Londres a maioria dos eleitores (60%) votou pela permanência do Reino Unido na UE. 58% no Nordeste da Inglaterra, 54% no Noroeste da Inglaterra, 52,5% no País de Gales e 57,7% em Yorkshire & Humber votaram pela saída da nação da UE. O "Brexit" representou, além de tudo, uma rejeição à política de austeridade de Cameron que é vista com bons olhos pela troika. Não foi à toa que ele anunciou sua renúncia do cargo de primeiro-ministro logo após a divulgação do resultado do referendo. Embora tenha declarado neutralidade durante a campanha, 25 de seus 30 ministros declararam apoio à permanência. Ao não se distanciar do Partido Conservador, os trabalhistas correm o risco de se tornarem uma força coadjuvante da cena política britânica. O principal vencedor do referendo foi o Partido da Independência do Reino Unido (UKIP), de extrema-direita, um dos dois únicos partidos com representação em Westminster a apoiar a saída da UE (o outro foi o Partido Unionista Democrático, que representa os protestantes na Irlanda do Norte). Entretanto, o Partido Trabalhista, sob a liderança de Corbyn, tem tudo para ampliar o diálogo com seus eleitores.

O Partido Trabalhista apoia uma medida e seus eleitores outra.
Corbyn foi eleito para restabelecer as pontes queimadas entre trabalhadores e trabalhistas há aproximadamente duas décadas, quando Tony Blair despontava nacionalmente na cena política. Depois de fazer o Partido Trabalhista perder a simpatia dos escoceses, o New Labour quer fazê-lo desperdiçar a oportunidade histórica de reavaliar seus erros do passado recente (incluindo a Guerra do Iraque). Aproximar-se do thatcherismo foi uma tática eleitoral interessante nos anos 1990, mas esta década já passou há muito tempo. Vivemos em tempos diferentes, onde uma crise econômica global, reforçada pela política de austeridade dos governos neoliberais, ameaça os trabalhadores. Não faz mais sentido falar em "fim das ideologias", conciliação entre capital e trabalho ou qualquer outra baboseira que Giddens tenha escrito que tanto seduziu Blair quando eu ainda era um bebê. Como o New Labour imagina que o Partido Trabalhista vai se sustentar daqui para a frente? Apenas com os votos de Londres? A esquerda está encurralada no Reino Unido. Não por seus méritos, mas por ter se tornado uma versão light do Partido Conservador. O sucesso do "Brexit" representa, também, a falência do entreguismo enquanto tática eleitoral da esquerda. Mas nem tudo é terra arrasada. A derrota da esquerda entreguistas no referendo deve reforçar a liderança de Corbyn, empoderando-o para provocar as reformas necessárias no partido.

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