segunda-feira, 6 de junho de 2016

A terapia de choque no Brasil


A implementação à força de uma política econômica de desregulamentação e de livre mercado – os princípios guiadores do economista americano Milton Friedman – é quase sinônimo de desastre econômico, intervenção militar e aumento da pobreza. Os EUA têm utilizado táticas extremas para injetar instabilidade e depois o neoliberalismo em diversos países ao redor do mundo – mais notoriamente no Chile, na Rússia e no Iraque. Isto é o que afirma o documentário de 2009 The Shock Doctrine (Mat Whitecross/ Michael Winterbottom), baseado no livro epônimo da ativista e cineasta canadense Naomi Klein.

O Dirty Movies identificou um padrão comum entre o que aconteceu nesses três países e os desenvolvimentos políticos no Brasil. Esperamos que este artigo irá chamar a atenção para a atual situação no país latino-americano. A "doutrina de choque" inclui guerra e, às vezes, tortura como passos necessários rumo à mudança econômica. O Brasil não deveria se tornar mais um país nessa lista.

O psiquiatra nascido na Escócia Donald Ewen Cameron conduziu, de maneira controversa, terapia de eletrochoque em seus pacientes nos EUA sem o consentimento explícito deles nos anos 1940 e 1950. Muitos desses pacientes ficaram permanentemente em coma ou incapazes de viver sem assistência médica. Klein revela que Milton Friedman conduziu um experimento muito semelhante em várias nações ao redor do mundo como forma de provar sua teoria de economia de livre mercado e até mesmo utilizou a palavra "choque" para descrever suas táticas. Os resultados foram desastrosos, exceto que neste último caso as vítimas foram nações inteiras.

Três países, três batalhas

Os EUA tiveram papel fundamental na derrubada do governo democraticamente eleito de Allende no Chile em 1973. Ajudaram a acabar com 41 anos de governo pacífico a favor de um modelo neoliberal que se consolidou através de prisões massivas, tortura descontrolada e assassinatos, tudo isto personificado na figura militar do General Augusto Pinochet.

Essas táticas "chocaram" o país em ao caos ao inventar uma narrativa de guerra contra supostos marxistas. A premissa era "salvar o país do caos do comunismo", mas teve claramente o efeito precisamente oposto: o país mergulhou no horror e na pobreza, com as conquistas sociais de Allende sendo rapidamente desmontadas e a inflação atingindo 375% em 1974, a maior no mundo de então. Tornou-se evidente que a liberdade de mercado é incompatível com a liberdade individual e a prosperidade social.

Margareth Thatcher alegremente ofereceu ajuda aos EUA nos anos 1980 para destruir a União Soviética. O líder soviético Mikhael Gorbachev queria implementar uma mudança gradual na União, visando adotar um modelo escandinavo de socialismo, mas acabou sendo forçado a implementar reformas radicais por seus "amigos" ocidentais (os Friedianos descarados Thatcher e Reagan). Seu sucessor, Boris Yeltsin, aliou-se mais ainda aos interesses neoliberais e os EUA apoiavam-no enquanto ele literalmente travava uma guerra contra o parlamento.

Esta guerra – que incluiu o ataque de tanques à Casa Branca russa (foto abaixo) – "chocou" o país a aceitar as reformas profundamente impopulares de Yeltsin. Como resultado, quase metade da população da Rússia passou a viver abaixo da linha da pobreza em alguns anos, enquanto Moscou tinha a maior concentração de milionários por metro quadrado do mundo.

Um tanque atacando a Casa Branca russa em 1993.

O "choque" no Iraque foi igualmente beligerante. Os EUA e o Reino Unido travaram uma guerra ilegal contra o país rico em petróleo do Oriente Médio, derrubando Saddam Hussein e estabelecendo um regime altamente volátil que eles chamavam de "democrático". As duas nações invasoras rotineiramente prendiam e torturavam qualquer um que quisessem, e muitos eram mandados para o limbo legal chamado Baía de Guantánamo – apenas três pessoas detidas na infame prisão caribenha foram condenados de um crime. Estas prisões, os abusos sistemáticos e as malversações eram notavelmente similares às de Pinochet, explica o documentário.

O rico fica mais rico

Friedman era inflexível quanto ao sucesso de sua política econômica de desregulamentação e de livre mercado implementada através do "choque", a despeito das evidências em contrário por todos os lados. Pouco antes de sua morte, em 2006, ele sugeriu que o desastre provocado pelo furacão Katrina em Nova Orleans deveria ser utilizado como uma oportunidade para privatizar completamente o sistema educacional de todos os EUA. Ele acreditava firmemente que a dor intensa provocava ganhos, mas nunca reconheceu que tais ganhos estavam confinados a uns poucos oligarcas.

O impacto negativo do neoliberalismo não está restrito aos países que sofreram a "terapia de choque". Também abriu a fenda econômica nas próprias sociedades dos perpetradores, os EUA e o Reino Unido. O filme revela que antes da era Thatcher-Reagan um chefe executivo (CEO) no Reino Unio ganhava apenas 10 vezes mais do que seus empregados, o que se elevou para 100 vezes mais nos anos 1990. Nos EUA, o mesmo dado subiu de 43 para 430 no mesmo período de tempo.

A máquina belicista neoliberal criou outras oportunidades econômicas. Por exemplo, a indústria de Segurança Interna nos EUA agora é maior do que as indústrias cinematográfica e musical juntas. o que o filme descreve como "uma nova economia construída pelo medo". Enquanto isso, o petróleo continua a ser o combustível da indústria automobilística e a guerra alimenta o mercado de armas por todo o mundo.

Retrocedendo

Gostaríamos de acreditar que a humanidade está constantemente movendo-se adiante e evoluindo, mas infelizmente nem sempre é o caso. A História tem provado que nunca devemos tomar o progresso por garantido.

O Brasil experimentou crescimento econômico por 13 anos e muitas conquistas sociais pareciam consolidadas. Quase 30 milhões de brasileiros foram retirados da pobreza, houve melhoria massiva no sistema educacional e o país até mesmo pagou sua dívida externa, pondo fim a sua dependência ao FMI. Até que em 11 de maio um golpe de estado parlamentar foi encenado, derrubando a democraticamente eleita Dilma Rousseff e colocando em seu lugar o neoliberal e corrupto Michel Temer. Em apenas 10 dias, ele agressivamente começou a desmantelar essas conquistas, suspendendo a construção de moradias e benefícios de milhões de brasileiros para favorecer os plutocratas, oligarcas e o grande sistema corporativo que ele representa.

Ele tem o apoio entusiástico – embora tácito – dos EUA. Não coincidentemente, a atual embaixadora dos EUA no Brasil é Liliana Ayalde: ela também foi embaixadora em Honduras e no Paraguai quando ambos os países sofreram um golpe de estado. Os Irmãos Koch, industriais americanos de refino do petróleo, financiaram o pseudo-movimento estudantil MBL, que ajudou a injetar instabilidade nas ruas do Brasil com o apoio da mídia brasileira. E, caso ainda haja alguma dúvida do envolvimento dos americanos no golpe, o golpista Aloysio Nunes viajou para se encontrar com Thomas Shannon – o oficial mais antigo em Washington no que diz respeito a assuntos latino-americanos – pouco antes da materialização do golpe, enquanto Obama nem chegou a denunciar o golpe ou até mesmo criticar os desenvolvimentos sombrios e ilegais no país.

O golpe no início do mês não representa, no entanto, uma vitória inequívoca do neoliberalismo. Os brasileiros estão indo às ruas protestar contra os desenvolvimentos recentes. A presidente Dilma foi suspensa, mas ela poderá ser restabelecida em novembro caso seja inocentada de "crime de responsabilidade" pelo Senado da nação. Uma conversa telefônica vazada revelou a trama para derrubá-la e a presidente suspensa e os apoiadores da democracia sentem-se energizados.

No momento atual, o Brasil passa por uma enorme convulsão social. De maneira muito preocupante, isto pode vir a se tornar um gatilho para a "teoria de choque" em todo o seu horror. A História tem mostrado que os neoliberais nunca têm medo de usar a intervenção militar e a tortura como forma de instilar o medo e implementar o modelo econômico desejado por eles. É por isso que os campeões da democracia e dos direitos humanos em todo o mundo devem denunciar os desenvolvimentos trágicos no maior país da América Latina – antes que o país seja vítima do eletrochoque e entre em estado de coma.

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