segunda-feira, 17 de agosto de 2015

O maior escândalo de corrupção do Brasil

Maria Lúcia Fattorelli, ex-auditora da Receita Federal.
Imagem: TV Senado.
O maior escândalo de desvio de verbas públicas do Brasil ocorre diante dos olhos de todos nós há pelo menos duas décadas. E você nunca verá ele ser denunciado por políticos de oposição nas páginas amarelas da Veja ou pela voz repreensiva de William Bonner no Jornal Nacional. Trata-se do pagamento de uma dívida ilegal que o Governo Federal possui com instituições financeiras e que compromete cerca de 45% do orçamento anual da União.Ou seja, de todo o recurso que o governo federal tem disponível para investir em saúde, educação, segurança, moradia, cultura, combate à fome e à pobreza, etc., cerca de metade vai para instituições privadas. É dinheiro público – dos impostos que eu e você pagamos – indo para o setor privado.

Como explica Maria Lúcia Fattorelli, auditora aposentada da Receita Federal e fundadora do movimento Auditoria Cidadã da Dívida, em princípio não há nada de errado quando um governo, seja ele municipal, estadual ou federal, pega empréstimos com instituições privadas, ainda mais se tais empréstimos são feitos com a finalidade de melhor atender ao público. É absolutamente normal que uma pessoa que não possua um recurso próprio para financiar um empreendimento pegue um empréstimo. No caso da dívida pública, a pessoa é o governo brasileiro e os credores são os bancos – nacionais e internacionais. Se o governo pegou dinheiro emprestado é a obrigação dele pagar essa dívida, não é mesmo? Bem, a resposta é mais complexa do que um simples sim ou não devido à forma como a questão se desenvolveu no país.

Vejam bem, a dívida brasileira não para de crescer. Ao auditar a dívida de outros países da América Latina e também da Europa – sendo o caso mais emblemático a Grécia – que passaram anos sob a tutela do Fundo Monetário Internacional (FMI), Fattorelli constatou que a maioria dessas dívidas não possuíam contrapartida. Ou seja, os governos estavam pagando os juros de uma dívida nula, que já não existia mais. Num primeiro momento, verifica-se, então, que o Brasil é refém desse mesmo sistema da dívida que afundou a Grécia. O endividamento dos governos, que deveria servir para complementar os orçamentos a fim de garantir melhores serviços públicos a todos, serve na verdade para desviar recursos públicos para o sistema financeiro. No ano passado, cerca de 335 bilhões de reais saíram das contas do Governo Federal para instituições privadas.

O que deveria ser utilizado apenas em casos de extrema necessidade virou algo corriqueiro. Semestralmente o Tesouro Nacional autoriza o Banco Central (BC) a fazer um leilão de títulos da dívida pública do qual apenas doze instituições podem participar. Não se sabe ao certo quais são, mas segundo Fattorelli são os maiores bancos do mundo: Citibank, HSBC, Itaú, Bradesco, etc. Ao vender esses títulos, o governo arrecada uma determinada quantia x dos bancos e lhes emite uma carta promissória, dizendo que irá pagar essa quantia x acrescida de juros (taxa Selic). No entanto, a Selic é uma das maiores taxas de juros do mundo, sendo, assim, mais interessante para os capitalistas – de dentro e de fora do país – comprar títulos da dívida do que investir no setor produtivo. “É a aplicação mais rentável do mundo”, afirma Fattorelli. E é por essa razão que o vice-presidente José de Alencar, ligado ao meio empresarial, era contra a alta de juros, uma vez que ela inibe os bancos de investirem em empresas.

Um ano de pagamento de juros da dívida equivale a 10 anos de
gastos com o Programa Bolsa Família. Imagem: Ivan Valente.
Durante a CPI da Dívida Pública, realizada entre 2009–10, o BC se recusou a informar quem eram as instituições credoras do país. Primeiro os representantes do BC disseram que não sabiam. Mas se não sabem, como é que pagam o que é devido? Depois disseram que a informação era sigilosa, o que também não é uma verdade, visto que a dívida é pública, paga por todos os cidadãos que mantêm seus impostos em dia. A CPI terminou sem o órgão que controla o sistema financeiro nacional revelar quem são os credores do Brasil. Até aqui a situação é gravemente imoral. Mas se torna ilegal a partir do momento em que fica constatado que tudo aquilo que o Governo arrecada não é o suficiente para pagar a dívida e cumprir com suas obrigações (educação, saúde, etc.) e então ele emite novos títulos para arrecadar dinheiro para pagar a dívida original. A Constituição Federal de 1988 proíbe expressamente o anatocismo – pagar juros da dívida através da contração de uma nova dívida. Seria, numa analogia tosca, como aquela pessoa que pega um empréstimo no valor de x num banco, não dá conta de pagar os juros sobre x, e faz um segundo empréstimo no valor de y para pagar o que deve.

Isso significa que essa pessoa estará pagando juros sobre juros. Os valores x e representam apenas uma parcela do que o devedor paga, sendo que boa parte de suas despesas representa o pagamento dos juros incidentes sobre x e y. “É uma bola de neve que gera uma despesa em escala exponencial e o Estado não pode fazer isso”, alerta Fattorelli. O grande problema disso é que um dia o Brasil não arrecadará o suficiente para pagar esses juros e precisará fazer uma escolha: ou corta os gastos sociais ou deixa de pagar a dívida. O atual ajuste fiscal representa um caminho rumo à primeira opção. Devido à desaceleração econômica, a arrecadação caiu e o Governo Federal se comprometeu a cortar 70 bilhões da saúde e da educação para conseguir pagar os juros da dívida. Mas um dia a dívida – que cresce exponencialmente – será maior do que a arrecadação, cujo crescimento depende de uma série de fatores, e aí não haverá mais como cortar gastos sociais em favor de honrar os compromissos com as instituições financeiras. Foi o que ocorreu na Grécia, onde a dívida é maior que o PIB.

Um escândalo dessas dimensões deveria ser de conhecimento de todos. Mas não é por alguns motivos básicos. Os bancos privados são os maiores financiadores de campanha do país, tendo doado de maneira equânime para os principais candidatos – Aécio, Marina e Dilma – nas eleições de 2014. É um sistema que os políticos aceitam como inevitável. E, além disso, os bancos são também os principais anunciantes da Rede Globo, da revista Veja e de praticamente todos os grandes veículos de comunicação do país, que já são concentrados nas mãos de poucos. A Folha de S. Paulo, por exemplo, afirma que o governo tem a obrigação de pagar a dívida. Dessa forma, bancos e mídia empurram para os leitores a agenda do superávit primário, o que significa que os gatos considerados primários (saúde, educação, segurança, moradia, cultura, etc.) devem sempre estar sempre abaixo da arrecadação, para garantir que o governo possua, todo ano, uma reserva para pagar os juros da dívida. Só que essa reserva nunca é o suficiente. Daí recomeça o sistema da dívida: o governo leiloa títulos, arrecada um montante y para pagar os juros da dívida x contraindo novos juros sob o montante y.

O verdadeiro escândalo de Dilma Rousseff. Charge: Latuff.
O trabalho de Fattorelli visa desnudar qual a quantia de dívida e de juros no montante genericamente chamado de “dívida pública”. São os valores x e y do exemplo dado acima, sendo possível chegar até eles através da identificação do momento de contração das dívidas. Segundo as estimativas da ex-auditora da Receita Federal, cerca de 50% da dívida brasileira contraída desde 2005 é nula, ou seja, são apenas juros. O processo de repasse de dinheiro público para o setor privado ganhou força em meados dos anos 1990 durante a implementação do Plano Real. À época, a dívida brasileira girava em torno de 80 bilhões de reais, mas a taxa Selic foi fixada pelo BC em 40% ao ano, o que significa que a dívida quase dobrou de um ano para o outro. Como resultado do período de juros altíssimos da Era FHC (1995–2002), a dívida pública brasileira aumentou quase 40 vezes. Fattorelli estima que 90% da dívida desse período seja composta de juros sobre juros.

Trata-se de um grave crime de lesa-pátria que, infelizmente, não parou no governo FHC. Ao não ter a mesma coragem de outros líderes latino-americanos de auditar a dívida pública, os governos do PT continuaram cúmplices de um sistema que retira dinheiro da educação, da saúde e da previdência social para engordar ainda mais as contas dos ultra-ricos. Esses estão pouco se lixando para os protestos de ontem na Avenida Paulista. Eles já conseguiram convencer Dilma – que levou a taxa Selic a seu patamar mais baixo da história (7,12%) em 2013 a fim de tentar incentivar a indústria nacional – a mudar sua política econômica a fim de favorecê-los. A corrupção na Petrobrás, apesar de grave, é apenas fogo de palha para desviar as atenções do país da verdadeira corrupção, que acontece sobre os narizes de todos nós. Como diz Fattorelli, “no dia em que a gente conseguir uma compreensão maior do que é uma auditoria da dívida, a gente muda o mundo e o curso da história mundial”, pois nos livraremos da escravidão do sistema da dívida, que frauda a política e a economia em diversos países do mundo.

Assim como os brasileiros que saíram às ruas ontem, também estou insatisfeito com o governo que ajudei a re-eleger. Mas não pelos mesmos motivos que eles. Acredito na justiça e na fraternidade e não aceito que o governo retire dinheiro do povo trabalhador para sustentar quem nada ou pouco investe na criação de empregos. Quero que o governo invista ainda mais em nosso povo. Não quero que banqueiros recebam um Bolsa Família bilionário enquanto ainda há gente tendo dificuldade para comprar os alimentos mais básicos nas áreas remotas do país. Vou pra rua, mas vou com o povo, que quer mais e que deu à presidente Dilma Rousseff um voto de confiança nas últimas eleições para que ela aprofundasse as tímidas reformas que o PT tem feito. Não elegi uma candidata que falava em ajuste fiscal e tampouco em corte de verbas de Universidades Federais. E não me venham com discurso de quem até hoje não aceita a derrota nas eleições, pois o Aécio faria o mesmo. Assim sendo, no próximo dia 20, irei protestar contra esse que é o maior esquema de corrupção do Brasil, desviando mais de 300 bilhões de reais de dinheiro público para os bancos todos os anos, e que conta com a conivência de uma candidata que se elegeu com uma plataforma reformista.

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