terça-feira, 11 de agosto de 2015

Brasil, campeão da transfobia

Imagem que circulou nas redes sociais após a morte de Laura.
Estava planejando publicar um texto sobre Laura Vermont, transsexual de apenas 18 anos morta pela Polícia Militar de São Paulo no último dia 20 de junho. Antes de começar a escrevê-lo, no entanto, me deparei, anteontem, com a notícia de que Viviany Beleboni, mais conhecida como a transsexual crucificada da Parada LGBT de São Paulo, foi esfaqueada no último sábado na mesma cidade. Decidi, então, juntar os dois casos para escrever este post denunciando aquele país que é o líder mundial em assassinatos de pessoas trans segundo a ONG Transgender Europe. O país que se orgulha de ter a maior parada LGBT do mundo é também o mesmo onde mais se mata pessoas trans. De janeiro de 2008 a abril de 2013, 486 pessoas trans foram assassinadas no Brasil, número quatro vezes maior do que no México, país que é o segundo colocado no ranking da Transgender Europe.

O caso de Laura Vermont me chamou a atenção porque ela era aceita pelos pais, o que já é bastante raro em nossa sociedade que não é somente homo-transfóbica; é também "outrofóbica", pois teme todos aqueles que fogem de um padrão social pré-estabelecido, todos que não se parecem com os detentores do poder. Agora que a homossexualidade torna-se relativamente aceitável pelo poder estabelecido, tornando-se visível em propagandas de perfume e telenovelas, os grupos conservadores voltam-se contra a minoria mais fragilizada da sigla LGBT contando, para isso, com o apoio fundamental de integrantes da própria comunidade - que, por sua vez, desejam aparecer em mais propagandas e ser aceitos pelo poder estabelecido, que impõe as normas sociais que valorizam os heterossexuais em detrimento dos LGBTs. "Gays chegaram a me falar que sou porca, que manchei a parada", desabafou Viviany à época da polêmica. Mesmo na dita esquerda política foi comum encontrar pessoas denunciando a performance de Viviany como um ato de provocação que não levaria a nenhuma conquista real. Esquerda que tem medo de lutar para mim não é esquerda.

Laura, vítima do Estado
À Laura, contudo, não bastou ser aceita pelos pais. Após ser espancada na rua, ligou para o 190 pedindo ajuda. É muito provável que se não tivesse buscado a ajuda do Estado ainda estivesse viva. Os policiais chegaram e, se deparando com aquele ser inofensivo, andando de maneira desnorteada na rua e sangrando pela boca, pelo nariz e por todos os lugares possíveis, tiraram-lhe a vida. Afinal, se ela estava na rua de madrugada é porque deveria ser uma prostituta e prostituta é menos ser humano do que a filha do coronel. Se for trans, então, aí é que desce ainda mais na escala dos oficiais da PM do que é um ser humano merecedor da vida. Ao contrário do que diz a lei, a PM não serve para proteger a todos nós sem distinções de gênero, classe ou qualquer outra. Serve para fazer a limpeza social das ruas de São Paulo e das grandes cidades do Brasil, pondo em prática a cartilha "outrofóbica" dos detentores do poder através da eliminação dos símbolos visíveis da exclusão social - meninos de rua, sem-teto, imigrantes, usuários de drogas, prostitutas e travestis - com os quais esse poder que gera a exclusão não quer lidar. Antes de descobrirem que gays também podem ser ricos, a PM também matava-os de maneira indiscriminada.

Laura foi apenas mais uma vítima de uma sociedade misógina e preconceituosa que, como último país das Américas a abolir a escravidão, ainda carrega em sua elite as marcas da escravidão, da sociedade de castas. Quando os gringos descobrem que o Brasil é um país sexualmente conservador e intolerante, eles se chocam. Afinal de contas, o maior produto de exportação do Brasil são as mulatas do Carnaval carioca. Somos tolerantes apenas para inglês ver. Num episódio do seriado de animação Os Simpsons, Homer e sua família viajam para o Brasil para descobrir o paradeiro de um órfão patrocinado pela Lisa. Nele, Marge vê homens vestidos de mulher e conclui que no Carnaval é permitido brincar com a própria sexualidade. Mas é só durante essa época do ano. Nos outros 360 dias, as pessoas que se vestem com roupas características do sexo oposto àquele de sua nascença são brutalmente atacadas, seja verbal ou fisicamente. Inclusive pela polícia, que age de maneira ainda mais odiosa que os próprios homo e transfóbicos. Taí o caso da jovem Laura Vermont que não me deixa mentir. Queremos silenciar o discurso de respeito às diferenças porque continuamos querendo ser uma sociedade excludente.

Viviany, pega para Cristo
Assim como Viviany, Jesus também foi acusado de blasfêmia.
Foto: minissérie The Bible.
Viviany Beleboni foi xingada durante sua performance na Parada Gay não por estar depreciando um símbolo da fé cristã. Isso foi o de menos. As igrejas reformadas não aceitam a iconolatria. Quem deveria ter se indignado com o fato de Viviany ter se colocado numa cruz - a Igreja Católica - não se manifestou. O que incomodou foi o fato de uma pessoa trans estar a exigir respeito e visibilidade para ela e para aqueles que são como ela. E ter conseguido fazer com que sua mensagem ecoasse na sociedade. Cristo foi executado numa cruz por ser diferente. Ele se recusava a seguir as leis judaicas ao pé da letra e se afirmava como filho de Deus. Assim sendo, tinha que ser executado por blasfêmia. Viviany fez uma acertadíssima analogia entre o sofrimento de Cristo e o sofrimento daqueles que, como ela, são agredidos por se recusarem a seguir as normas sociais. Pode ter ofendido às legiões de falsos cristãos que acham que a interpretação da mensagem da Bíblia depende de líderes, mas não ofendeu àqueles que entendem que há muito mais semelhanças do que diferenças entre a vida de Jesus Cristo e a vida dos oprimidos.

Em meio a tanta imbecilidade cristã, o Papa Francisco protagonizou um ato ousado no Vaticano no último dia 24 de janeiro: recebeu o transsexual espanhol Diego Neria Lejarraga. A Igreja espanhola, como já é de conhecimento de todos, é uma das mais reacionárias do mundo, tendo servido de alicerce para a ditadura fascista de Francisco Franco. Diego, ao adotar a identidade de gênero masculina, foi proibido pelo padre de sua comunidade de comungar, sendo apelidado de "filha do Diabo" pelos fiéis locais. O ocorrido levou Diego a escrever para o Papa, que o recebeu na residência de Santa Marta no Vaticano. Enquanto isso, líderes de igrejas neopentecostais brasileiras atuam como afirmadores do status quo ao incentivar seus liderados - em sua maioria pessoas com escolaridade baixa - a atacar aqueles que já são os mais oprimidos pelos poderes estabelecidos. "Você é um demônio, tem que morrer, o pastor está certo", ouviu Viviany antes de ser agredida. O líder da maior Igreja cristã do mundo discorda.

Papa Francisco abraça transsexual. Enquanto isso, líderes
cristãos incentivam atentados à vida de Viviany Beleboni.
Segundo Viviany, a vontade que ela teve, após a agressão, foi de cometer suicídio: "Fui pra casa, minha vontade era morrer, porque eu não aguento mais". Boicotada desde a performance na Parada LGBT de São Paulo, ela não consegue arranjar emprego desde então. Viviany vive com medo: medo de ser agredida, medo de ser assassinada, medo de nunca mais trabalhar. Espero do fundo do meu coração que Viviany reconsidere as declarações que deu ao site Ego. Que ela resista ao medo e à dor e que consiga, de alguma forma, encontrar a alegria no ato de viver. Nossa sociedade precisa de pessoas como ela. Pois são pessoas como ela que expõe como nossa sociedade é doentia. Uma sociedade que venera um carpinteiro assassinado na cruz por não ser membro da elite religiosa judaica, por ousar pregar o amor num tempo de ódio, por tentar reformular as leis religiosas, mas é incapaz de sentir compaixão por aqueles que são as vítimas das elites atuais. Se Viviany tirar sua vida, então os "outrofóbicos" terão vencido. Não é o que queremos. Queremos apenas o direito de existir das minorias. Se a nossa mera existência ofende alguém e inspira discursos genocidas, então quem tem problemas psicológicos não somos nós.

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