sábado, 8 de agosto de 2015

Veja – do jornalismo à ficção

Anteontem, o jornalista Paulo Nogueira publicou um texto em seu Diário do Centro do Mundo (DCM) tentando elucidar a seus leitores “o longo percurso da Veja rumo à miséria jornalística”. Segundo Nogueira, o estágio atual da revista de maior tiragem do país deve-se às disputas de poder na família Civita. O jornalista conta que, ao contrário do patriarca Victor Civita (1907–1990), o herdeiro Roberto (1936–2013) gostava de impor sua visão de mundo na publicação.

Victor chegou ao Brasil em 1950, quando fundou a Editora Abril com o intuito inicial de publicar as histórias do Pato Donald para o público brasileiro. Considero esse gibi o melhor produto da casa editorial nos dias de hoje e o único que ainda vale minhas moedas. Nos anos seguintes, Victor decidiu diversificar o leque de suas publicações. Assim sendo, em 11 de setembro de 1968 nasceu a revista Veja, a mais duradora revista de current affairs ainda em circulação do mercado editorial brasileiro.

Em sua primeira capa, Veja trouxe algo inimaginável para os leitores assíduos da publicação nos dias de hoje – uma foice e um martelo sob um fundo vermelho. A reportagem falava sobre a disputa de poder entre a China maoísta e a União Soviética de Brezhnev, cada qual lutando para exercer mais influência sobre os países do bloco socialista. Lançada num momento político delicado, de recrudescimento do regime militar e três meses antes do AI-5, é inútil lembrar que a edição foi censurada. De fato, a Veja permaneceu censurada até 1976. 

A Veja foi co-criada e editada por Mino Carta em seus primeiros anos. Carta era o homem de confiança de Victor Civita. Segundo Nogueira, “estava em seu contrato que os Civitas só comentariam a revista depois que ela chegasse às bancas”. Isso se deve ao fato de Victor, ao contrário de outros empresários de mídia do país, jamais ter se considerado um jornalista. Em 1976, Carta saiu da revista cujo formato ajudara a criar para que o governo pudesse liberar um empréstimo da Caixa Econômica Federal para sanar as dívidas da Editora Abril. A ditadura se recusava a liberar a quantia ao grupo editorial devido ao fato de sua principal publicação ser editada por um militante “antigoverno”. Roberto pressionou Victor a deixar Carta partir.

Junto com Mino Carta foi-se a censura e o modelo Victor Civita de gerir a publicação. Segundo Nogueira, a chegada do segundo diretor de redação da Veja, José Roberto Guzzo, “representou a entrada de Roberto nas decisões editoriais”. Data dessa época (1983) a decisão – inconsciente ou não – de publicar uma reportagem satírica da revista New Science como fato. O periódico britânico publicou como piada do Dia da Mentira uma reportagem onde afirmava que cientistas haviam conseguido mesclar o DNA de um tomate com o DNA de uma vaca para produzir carne já temperada. No final da matéria original havia uma nota – que a redação da Veja pode não ter visto ou não – explicando que se tratava de uma brincadeira.

O "boimate" foi a primeira vez
que a Veja flertou com a ficção.
O “boimate”, que poderia ter sido evitado caso a revista tivesse checado os fatos com qualquer aluno ou professor de biologia, foi só a primeira de muitas matérias de teor questionável da Veja no período Guzzo. Quem não se lembra da capa de 1989 onde a revista proclamava Fernando Collor de Mello como referência em gestão de recursos públicos? O mesmo Collor que foi afastado por corrupção e hoje é apontado como beneficiário de propina no esquema de corrupção investigado pela Operação Lava Jato. Foi do mesmo ano a decisão de publicar uma reportagem – de mal gosto – onde a revista expunha as intimidades de um moribundo Cazuza, proclamando que sua obra não resistiria à prova do tempo. A reportagem responsabilizava o cantor pela AIDS; afinal, ele não teria a doença se não fosse homossexual nem usasse drogas. É notória a posição da revista de crucificar artistas usuários de drogas em suas mortes, mesmo quando elas não tenham sido as responsáveis.

Quando Nogueira passou a trabalhar na revista, em 1980, “já houvera a transferência efetiva de poder” de J. R. Guzzo para Roberto Civita, mas as aparências eram mantidas. Roberto raramente aparecia na redação mas, nas noites de quinta-feira, véspera do fechamento da edição semanal da revista, se encontrava com J. R. Guzzo em sua sala no sexto andar do prédio da Editora Abril. Juntos, combinavam aquilo que entrava ou não na revista, quase sempre acompanhados de Élio Gaspari, adjunto de J. R. Guzzo.

Victor Civita morreu em 1990 e J. R. Guzzo saiu da revista em 1991. “Mario Sérgio Conti, o sucessor de Guzzo, deveria ser um passo a mais na tomada de poder por Roberto Civita, mas, no meio do caminho, aconteceu o caso Collor”, afirma Nogueira. Em 1992, Conti ajudou a derrubar o presidente que Roberto elegeu. Mas o problema, segundo Nogueira, não foi nem esse. O problema é que Conti foi vaidoso e quis assumir para si todos os louros pela derrubada de Collor. Certo dia, Roberto foi à redação da Veja com um grupo de empresários para mostrar-lhes como funcionava a revista. Conti falava com Claudio Humberto, uma das fontes no caso Collor, e fez um sinal com a mão para que Roberto voltasse mais tarde. Isso teria sido a gota d’água.

O sucessor de Conti foi Tales Alvarenga, seu adjunto, que, segundo Nogueira, era “um apagado editor de carreira que subiu na hierarquia por inércia”. O novo diretor de redação foi crucial para que Roberto Civita passasse a gerir a revista como bem entendesse. O editor do DCM afirma que estava na disputa para o cargo de chefe de redação, mas que “Roberto percebeu que Tales, um burocrata pouco brilhante, faria tudo que ele gostaria sem opor nenhum tipo de sombra”. Justiça seja feita, durante a era Tales, a revista ainda manteve algum grau de independência dos poderes políticos. De vez em quando ainda publicava alguma capa desfavorável ao PSDB. Eurípedes Alcântara, repórter responsável pelo “boimate”, assumiu a direção de redação da Veja  na década de 2000 e terminou de executar a guinada da revista à direita, eliminando o pouco de diversidade ideológica ainda existente na redação. O homem forte de Roberto Civita foi o responsável pela cobertura do escândalo do mensalão e da campanha pelo desarmamento. 

Durante o plebiscito do desarmamento, em 2005, a revista Veja defendeu que seus leitores votassem contra a medida, tentando associá-la ao PT – quando até mesmo notórios políticos da oposição como José Serra, Geraldo Alckmin e ACM Neto declararam-se favoráveis à medida. Segundo Barbara Gancia, então colunista da Folha de S. Paulo, a revista não deveria reportar a questão por se tratar de um caso de conflito de interesses. Segundo ela, o prédio alugado pela Editora Abril na Marginal Pinheiros é de propriedade da família Birmann, dona da Companhia Brasileira de Cartuchos. Outro caso de conflito de interesses é a posição contrária da revista ao sistema de cotas raciais. No auge das discussões sobre as cotas, 30% das ações da Editora Abril foram compradas pelo grupo sul-africano de mídia Naspers, que apoiou o regime de segregação racial naquele país. Após obter prejuízos com a Abril, o grupo baixou sua participação acionária na editora.

Desde então, a Veja deixou de apresentar ao público aquilo que seus leitores gostariam de ler para apresentar os interesses econômicos de seu dono, quase sempre num tom arrogante e autoritário. Segundo Nogueira, Alcântara se presta “basicamente a transformar em capas, títulos, textos e legendas as determinações do patrão”. A falta de treinamento jornalístico de Roberto Civita se esparramou pelas páginas da Veja. Não era mais necessário checar fatos e fontes. Bastava alguém declarar algo para a revista publicar. Foi assim que ela publicou uma matéria afirmando que o então presidente Luiz Inácio Lula da Silva possuía uma conta bancária no exterior, embora “não pudesse nem confirmar e nem desmentir” esse fato que, mesmo assim, foi publicado. Em caso de dúvida razoável, não se publica uma matéria. Isso é uma regra básica do jornalismo. Mas isso não importa mais. Agora deve-se defender as visões do patrão a qualquer custo, mesmo que esse custo seja a verdade factual. 

Em abril de 2012, veio à tona o escândalo Cachoeira e, com ele, um grande baque na credibilidade da revista. Descobriu-se, então, que a Polícia Federal tinha interceptado mais de duzentas ligações entre Policarpo Júnior, editor da Veja em Brasília, e o bicheiro Carlos Cachoeira. Segundo a CartaCapital, revista independente fundada por Mino Carta, Cachoeira foi o responsável por arranjar e filmar o recebimento de propina nos Correios, que foi divulgado pela Veja e deu origem ao escândalo do mensalão. A revista, intimidada e questionada, passou a atacar Carta, acusando-o de cooperar com a ditadura enquanto ele era diretor de redação da Veja, num momento em que não só a revista, mas toda a mídia brasileira era alvo de censura prévia.

O Tribunal Superior Eleitoral condenar a revista por fabulações é algo corriqueiro em eleições. Em 2010 a revista foi condenada pelo TSE a oferecer direito de resposta ao PT por tentar associar o partido às Farc, grupo narcoguerrilheiro da Colômbia. Em 2014 foi novamente obrigada a ceder seu espaço para o partido após acusar Dilma Rousseff e Lula de participação no esquema denunciado na Operação Lava-Jato. No entanto, aquela que talvez seja a edição mais fictícia da revista é a que saiu às bancas na semana passada. Nela, a revista afirmou que o empreiteiro Léo Pinheiro havia oferecido delatar o ex-presidente Lula como partícipe no esquema de corrupção da Petrobras. O próprio Pinheiro – que não foi ouvido pela revista – negou tal intenção e afirmou que todas as frases atribuídas a ele na reportagem eram falsas. Após anos apanhando calado, Lula enfim decidiu processar a revista por danos morais. 

Na mesma edição, a revista acusou o ex-jogador de futebol e senador Romário de possuir uma conta bancária na Suíça. O próprio jogador viajou até o paraíso fiscal para pedir uma diligência oficial do banco BSI, onde ele teria aberto a conta, sobre o extrato bancário publicado pela Veja. O BSI confirmou que o Senador não possui conta no banco e que os documentos publicados pela revista eram falsos. Anunciou também que vai pedir uma investigação junto ao Ministério Público da Suíça. Segundo Ricardo Noblat, colunista do jornal O Globo, a acusação da Veja pode ter sido orquestrada pelo prefeito do Rio de Janeiro, Eduardo Paes, uma vez que Romário é um forte candidato às eleições municipais do ano que vem na cidade, numa chapa de oposição ao PMDB do prefeito. Mais uma vez, como já é de praxe, faltou apurar os fatos antes de publicá-los.

As chances da Veja ser punida no Brasil em ambos os casos são mínimas, mas ela terá que se explicar à Justiça suíça por ter falsificado documentos bancários. Antes da nota oficial do BSI, a revista fez o que faz de melhor quando suas reportagens são questionadas à luz da realidade: se vitimizou e atacou o jogador, usando para isso seus cães raivosos. Agora que ela deve responder na Suíça por inventar matérias, decidiu pedir desculpas a seus leitores. Acho que essas desculpas vieram um pouco atrasadas, considerando toda a ficha corrida da revista nos últimos anos. Se fosse minimamente séria, Veja demitiria Eurípedes de Alcântara e buscaria um afastamento total do modelo de jornalismo implantado por Roberto Civita, o exterminador da verdade e da diversidade ideológica. Mas a própria manutenção de Eurípedes no cargo após a morte de Roberto demonstra que Giancarlo Civita é, assim como seu pai, apenas o filho do dono. Poderia ser alguém, mas prefere ser um sobrenome.

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