segunda-feira, 19 de outubro de 2015

A mídia mantém o Brasil em 1916

O que os cidadãos de Waco fizeram trouxe desgraça e humilhação para o país e para eles mesmos, pois em qualquer lugar que a notícia chegar - e ela chegará longe - ficará a certeza de que em nenhuma terra, nem mesmo as que fingem ser civilizadas, pode um homem ser queimado até a morte nas ruas de uma cidade considerável em meio à exaltação selvagem de seus habitantes. — Editorial, The New York Times, 17 de maio de 1916
A citação acima se refere ao linchamento do jovem negro Jesse Washington por uma multidão enfurecida de Waco, Texas no dia 15 de maio de 1916. Washington, um trabalhador negro de 17 anos de idade, foi acusado de estuprar e assassinar a esposa de seu patrão. Ninguém presenciou o crime, mas o jovem assinou uma confissão após ser interrogado pelo xerife do Condado de McLennan. Washington foi julgado em Waco, onde declarou-se culpado e foi condenado à morte. Após o juiz pronunciar a sentença, o jovem foi arrastado para fora do tribunal por populares e linchado na praça principal da cidade. Cerca de 10.000 pessoas, incluindo as autoridades locais, se reuniram para assistir ao linchamento. Muitos pais buscaram seus filhos no colégio para que pudessem presenciar a justiça sendo feita. Washington foi despido, castrado, teve os dedos cortados e, por fim, foi dependurado numa árvore. Embaixo, os moradores acenderam uma fogueira. Seu corpo foi deixado sobre a fogueira por cerca de duas horas. Após o fogo ser extinto, seu torso carbonizado foi arrastado pela cidade e vendido como souvenir do maior evento social do ano na cidade. Um fotógrafo profissional que se encontrava na cidade registrou os acontecimentos, sendo esta a primeira vez que um linchamento foi retratado enquanto ainda acontecia. As fotografias foram reveladas e vendidas como cartões-postais.

Jesse Washington, ou o que restou dele.

Apesar de ter recebido o apoio da elite local, que queria construir a imagem de uma cidade moderna e liberal, o linchamento chocou a elite letrada dos Estados Unidos. Jornais de todo o país – mesmo de estados até então segregados, como o próprio Texas e o Alabama  condenaram o ataque. O mesmo New York Times que abre esse artigo apelidou o ocorrido de "o horror de Waco". A NAACP, organização mais antiga de defesa dos direitos civis nos EUA, utilizou as fotos do ocorrido em sua campanha nacional anti-linchamento. Segundo historiadores, o ataque sofrido por Washington foi o primeiro grande evento que ajudou a colocar a opinião pública dos EUA contra os linchamentos de criminosos negros, prática muito comum nos estados segregados do Sul da nação. A publicidade negativa que o fato gerou freou o apoio popular à prática, que passou a ser vista como um ato de barbárie ao invés de uma forma aceitável de justiça. Devido à reputação que Waco recebeu de ser uma cidade racista, as autoridades municipais posteriores decidiram atuar no sentido de impedir linchamentos nas décadas seguintes. Os livros didáticos de história dos Estados Unidos apresentam o horror de Waco como uma mancha na história do país, o que fez com que a polícia de Waco repensasse suas práticas. Durante o Movimento pelos Direitos Civis dos anos 1960, os policiais aplicaram táticas de não-violência contra os manifestantes, temendo que a cidade fosse novamente estigmatizada pela mídia nacional.

Waco, 1916 é aqui

Mas o que um fato ocorrido há quase cem anos nos Estados Unidos tem a ver com o Brasil? O horror de Waco serve para ilustrar o poder insidioso da mídia brasileira. Não possuímos nenhum grande jornal do porte de um New York Times a condenar os linchamentos de forma veemente. Pelo contrário, a mídia brasileira incita crimes como o ocorrido em 15 de maio de 1916 em Waco. Em 5 de fevereiro de 2014, quando rapazes de classe média com uma extensa ficha policial prenderam um jovem – negro como Jesse Washington  num poste sob a acusação de ter roubado um celular, a apresentadora do telejornal SBT Brasil leu um editorial onde defendia o linchamento. Três meses depois, incentivados por sua diva proto-fascista, moradores do bairro de Morrinhos IV, na periferia do município do Guarujá, espancaram Fabiane Maria de Jesus até a morte após terem confundido-na com uma feiticeira que estaria sequestrando bebês do bairro para praticar rituais de magia negra. Tratava-se de um boato propagado por uma página policialesca do Facebook intitulada Guarujá Alerta. Fabiane teve o azar de se parecer com o retrato falado divulgado pela página de justiceiros. Um ponto em comum entre o discurso irresponsável da apresentadora do SBT e o boato que levou à morte de Fabiane está a disseminação das redes sociais para amplificar o ódio e a ignorância propagados todos os dias por um tipo de telejornalismo incompatível com a justiça, que foi inclusive proibido por lei  no Uruguai antes das 22 horas. Aqui no Brasil a lei garante que telejornais podem ser exibidos a qualquer horário na televisão aberta, mesmo que seja para violar a dignidade de telespectadores e personagens através da exibição de cadáveres e muito sangue.

Waco, 1916.
Quando Fabiane foi assassinada pela horda de ignorantes selvagens de Guarujá, não faltou quem culpasse pessoalmente a apresentadora do SBT pessoalmente pela tragédia. No entanto, não podemos ser tão ingênuos: o problema não é ela. Ela é apenas a garota-propaganda desse tipo de jornalismo que não deveria mais existir num Estado democrático de direito. Um jornalismo que vale-se da ignorância de seu público para ganhar audiência. Ao contrário do New York Times– que ao posicionar-se contra os linchamentos pretendeu instruir seu público contra um ato de barbaridade extrema ainda presente numa sociedade onde deveria prevalecer a ordem jurídica , a mídia nacional incita a barbaridade, o estupro das instâncias jurídicas, para ter ainda mais violência para retratar. Na minha opinião, trata-se de um ciclo vicioso: a sociedade comete crimes, a mídia cobre os crimes e a sociedade – que anseia a fama, mesmo que infame – comete ainda mais crimes. Gugu entrevista Suzane von Richtofen e a transforma numa versão nada fictícia de Roxie Hart do filme Chicago. É um jornalismo que choca os britânicos e causa asco nos brasileiros que compreendem a verdadeira dinâmica da sociedade. A indignação dos indignados com a criminalidade não se faz presente, no entanto, quando descobriram os dez milhões de reais do presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha, na Suíça. É justamente dos políticos corruptos que nascem os miseráveis que, sem oportunidades de crescimento pessoal, adotam medidas extremas para sobreviver. Quando Cunha desvia dinheiro público, desvia dinheiro que poderia evitar que um jovem precisasse roubar para sobreviver.

Não é à toa que corruptos como Cunha defendam a redução da maioridade penal. Mas esse é outro problema de ordem ética. Voltando ao campo do jornalismo, a ONG Andi, que há 21 anos trabalha para dar visibilidade na mídia a questões relacionadas aos direitos de crianças e adolescentes, realizou uma pesquisa e chegou à conclusão que apenas os 30 programas de televisão e rádios analisados cometem, por mês, uma média de 1.936 violações de direitos. O jornalista Laurindo Leal Filho apontou algumas das mais berrantes violações em artigo para a Revista do Brasil; segundo ele, um apresentador que incita a morte de um suspeito viola de uma só vez cinco leis brasileiras, cinco acordos internacionais dos quais o Brasil é signatário, além do Código de Ética dos Jornalistas Profissionais. Sem falar que, ao contrário do que pode parecer, a morte de suspeitos não contribui para a paz social. Pelo contrário, incentiva ainda mais um conflito entre concidadãos que costuma vitimizar justamente os membros mais vulneráveis de uma sociedade extremamente desigual. Uma mídia que atua no sentido de preservar a injustiça social não pode ser a porta-voz do país que queremos construir. Como pessoas esclarecidas, devemos lutar não só contra a mensagem espalhada pela mídia brasileira, mas também contra a própria mídia. Se boicotarmos a mídia – e incentivarmos outras pessoas a fazerem o mesmo deixando claro o tipo de jornalismo que queremos, um que seja pautado pela ética e pelo respeito à vida e à dignidade humana, quem sabe conseguiremos tirar o Brasil de 1916.

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