terça-feira, 6 de outubro de 2015

Conto: A vingança dos mortos

Esta não é uma história de amor. É uma história de ódio e vingança que se passa numa terra sem lei. Aconteceu em meados da década de 1970 numa república das bananas. O presidente do local, democraticamente eleito, havia acabado de ser deposto por uma junta militar. Algo corriqueiro naquela época nas porções de terra localizadas abaixo da linha do Equador. Suas propostas, idênticas às do presidente norte-americano Franklin Roosevelt, haviam sido consideradas absurdas pela imprensa e pela classe média, quem imploraram aos generais para que salvassem o país da “ameaça vermelha”. E assim foi feito. No entanto, os generais não cumpriram sua parte do acordo. Gostaram do poder e não quiseram devolvê-lo aos civis. Com a promessa de transformar uma das nações mais atrasadas do mundo no “país do futuro”, mantiveram-se no poder. E conseguiram feitos incríveis, como a explosão da pobreza e da criminalidade, o retorno de doenças tropicais já erradicadas e o maior crescimento econômico do mundo com arrocho salarial.

É nesse cenário em que tudo ocorreu, por um acidente do destino. Maria era uma jovem de classe média como outra qualquer dos anos 1960. Era a líder do fã-clube local dos Beatles. Não gostava muito de política, mas sabia que não era certo prender e revistar as casas das pessoas sem ordem judicial e muito menos censurar músicas e peças de teatro. Um dia, voltando para casa da faculdade no final de tarde, a jovem levou um baita susto. Foi surpreendida por sua amiga Isabel, que havia acabado de regressar da capital e com a qual já não se comunicava há seis meses. As duas colocaram o papo em dia numa mesa de bar até que Isabel lhe perguntou se podia dormir em sua casa. Maria não via problema nenhum no pedido, uma vez que as duas se conheciam desde quando eram crianças, apesar de terem seguido caminhos distintos no ensino médio; Isabel entrou na política estudantil e foi eleita para liderar o grêmio estudantil e, mais tarde, a União Estadual dos Estudantes, enquanto Maria fundou um fã-clube de sua banda favorita. Apesar disso, Isabel sempre esteve presente na vida de Maria nos momentos difíceis. Foi assim no ano anterior, quando os pais dela morreram, deixando-a sozinha naquele casarão enorme.

De madrugada, sirenes acordaram Maria. Ela foi até a sala ver o que se passava. Quando viu policiais se aproximando da casa, seu coração quase parou. Foi correndo até o quarto acordar Isabel. Eis que, para seu espanto, a amiga sacou uma arma e foi até a sala. Maria ouviu tiros e, quando abriu a porta do quarto, viu Isabel estirada no chão, ensanguentada. Um dos policiais viu que Maria estava observando a cena e foi até o quarto. Deu uma coronhada na cabeça da jovem e a colocou numa Kombi preta, ao lado de sua amiga. Quando Maria acordou, não tinha a mínima ideia de onde estava. Não se lembrava de nada que havia ocorrido algumas horas antes. Só sabia que estava presa, pois estava numa cela fétida, cheirando a sangue e mofo. De repente, a porta da cela se abre, jogam Isabel, à beira da morte e, antes que Maria pudesse dizer algo à amiga, puxaram-na pelo braço e disseram: “Agora é a sua vez!”. A jovem ficou sem entender: vez de quê? Levaram-na para uma sala escura onde tocava uma música em volume absurdamente alto. Um senhor, cujo rosto as sombras encobriam, perguntou à moça: “Há duas formas de se fazer isso: a fácil e a difícil. Qual você escolhe?”. Maria disse que escolhia a fácil, pois queria ir embora dali logo para não perder uma aula na faculdade.

O policial misterioso, então, revelou seu rosto à jovem: tinha cabelos pretos, um nariz fino, sobrancelhas grossas e uma boca delicada. Seria um verdadeiro galã, caso não tivesse sequestrado Maria e torturado sua amiga. Ele começou a fazer perguntas à jovem, mas a moça não soube lhe responder nada. Nunca tinha sequer ouvido falar dos nomes mencionados tampouco dos acontecimentos atribuídos a ela e a Isabel. “Eu não sei nada disso não, senhor, só quero estudar e cuidar da minha vida”, disse. De repente, o policial se levantou lentamente e caminhou rumo à jovem. Colocou suas mãos sobre os ombros dela. “Então você prefere o jeito difícil? É uma pena ter que violar uma jovem tão linda como você”, disse enquanto a enforcava. Maria implorou ao policial para que não fizesse nada com ela. Disse que tinha repulsa a armas, que jamais participaria de um assalto, que respeitava o governo e que sempre agiu conforme a lei. O policial não quis nem saber. Rasgou-lhe o vestido. Quando colocou sua mão dentro da calcinha da moça, ela começou a gritar. Ouviu como resposta: “Pode gritar, aqui ninguém se importa, você está numa terra de homens e deveria saber disso antes de mexer com armas”. Após tirar a virgindade da moça. o policial retirou-se da sala.

Antes que a jovem pudesse pegar o que restou de seu vestido, outros dois policiais entraram na sala. Quando Maria pensou que seu martírio tinha acabado, veio mais tortura: toda vez que ela não sabia responder algo, era submetida a uma forma de tortura diferente. Primeiro aplicaram-lhe choques na vagina e nos seios, depois penetraram-lhe a vagina e o ânus com uma barra de metal. A jovem nunca tinha visto tanto sangue saindo de seus orifícios como naquele dia. Quanto mais ela suplicava para que parassem, mais intensamente torturavam-na. Por fim, Maria estava sendo submetida à tortura do afogamento quando o policial que a havia estuprado durante a madrugada entrou na sala. Disse cinicamente, sem peso algum na consciência, para que os policiais parassem com aquela sessão medieval porque a jovem falava a verdade. De fato ela não tinha envolvimento algum com os subversivos. Um deles havia entregado todos os membros da organização, mas disse nunca ter ouvido falar de Maria, explicou o policial. “Que pena, estávamos só começando com essa coisa linda”, disse um dos torturadores. A moça foi levada de volta à cela, onde Isabel já não se encontrava mais.

Maria não resistiu aos ferimentos e faleceu poucas horas depois. Os policiais encontraram-na debruçada sob uma poça de sangue. Ela havia morrido sufocada no próprio sangue. Eles logo pensaram em como esconderiam o “trabalho” que haviam feito na moça. Prática comum naquela delegacia, que tinha a função de proteger a sociedade de seus membros mais extremistas. Ainda mais agora que haviam torturado até a morte uma pessoa inocente. Seria um escândalo caso alguém ficasse sabendo do ocorrido. Era perigoso, pois, mesmo censurada, a imprensa estava cheia de subversivos e volta e meia alguma coisa desfavorável ao governo era publicada. A revolução não podia correr o risco de falhar porque uma moça estava no local errado, na hora errada e foi pega por engano. “É perfeitamente normal acontecer fatalidades assim em tempos de guerra”, pensou o galã, responsável pelo interrogatório. Assim sendo, seus subordinados enterraram o corpo de Maria num matagal onde ele nunca mais pudesse ser encontrado. Se por alguma artimanha do destino fosse encontrado, a causa mortis apontada pelos policiais civis e pela imprensa seria provavelmente estupro seguido de morte. O trabalho de algum maníaco qualquer que ronda a cidade, jamais o de um policial.

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Uns dois anos se passaram naquela pacata cidade do interior. Num dia qualquer de maio, mês de aniversário do golpe de Estado que os livros de história chamavam de revolução, haveria um baile em homenagem aos membros do Partido Democrático da Renovação Nacional, o braço civil da junta que governava o país. Não se tratava de uma cidade grande ou economicamente importante para o país, mas era a sede de uma base aérea. Era importante para o regime fazer propaganda do local, principalmente para o Exército dos Estados Unidos, para o qual negociava repassar a administração do local. Assim sendo, a cidade se pôs num clima de festa. As mulheres prepararam seus vestidos com meses de antecedência. Os repórteres mal podiam esperar para fotografar deputados e senadores que, pela primeira vez, pisariam na cidade. Os comerciantes se digladiavam para conseguir um valioso contrato de fornecimento com a prefeitura. Por outro lado, estudantes protestavam. Isto é, aqueles que ainda tinham coragem de dizer alguma coisa. Muitas pessoas – talvez a maioria – apenas se conformavam com a dura realidade. Tinham medo de que pudessem ser a próxima vítima.

O baile foi realizado na Biblioteca Municipal, e contou com a presença de figuras caras ao regime, como o torturador de Maria que, a essa altura, já tinha conseguido uma promoção por “inestimáveis serviços” prestados à polícia política do estado. Ele foi com a namorada da vez. Os rumores na cidade eram de que ele trocava de namorada a cada festa. Eis que, quando ele se gabava de ter matado o chefe do principal grupo de revolucionários comunistas do país para um repórter, levou um grande susto. “Não pode ser!”, pensou consigo mesmo. De repente, seu rosto ficou branco como o de uma assombração, suas mãos ficaram geladas como as de um esquimó e sua voz parou de sair. O repórter e a namorada imediatamente olharam para o mesmo rumo que o policial olhava e viram uma moça de corpo esguio e seios fartos enfiados num vestido branco sem alça, de pele bronzeada, cabelos pretos e lisos, lábios carnudos, nariz fino e olhos negros. Era Maria! A namorada do policial deu-lhe um beliscão para que parasse de encarar a moça. E, como não obteve a resposta esperada, começou a discutir com ele. O repórter, constrangido com a situação, pediu-lhes licença.

O policial jamais havia esquecido o rosto de Maria. Afinal, ela era a única moça – até onde ele sabe – que ele e seus colegas haviam matado por acidente. Após sua namorada se retirar do recinto, para nunca mais voltar, ele se dirigiu até Maria. Apresentou-se a ela e levou um susto ainda maior quando ela lhe disse seu nome: Ana. Começaram a conversar e, quando o policial julgou adequado, perguntou-lhe se ela tinha irmãs. Para seu espanto, Ana disse que não, que era filha única. Ele decidiu, então, ir atrás de um de seus colegas de corporação com a desculpa de que traria uma bebida para a moça. Quando estava servindo o ponche, indagou seu colega Carlos: “Olha aquela moça, ela não é a cara daquela Maria?”. “Que Maria?”, indagou o colega. “Aquela moça que a gente matou por engano”, respondeu o policial. “Tá doido! Fala baixo!”, disse Carlos, que afirmou não conseguir se lembrar de tal Maria. De repente, o policial viu algo que jurava ser uma mancha de sangue no vestido de Ana. “E aquilo ali, não é uma mancha de sangue?”, perguntou ao colega. “É uma rosa vermelha estampada”, disse Carlos, já preocupado com a saúde mental do colega.

O policial voltou para perto de Ana e a moça demonstrou estar chateada por ele ter ficado tanto tempo longe dela. Quando percebeu que sua namorada havia sumido, o policial pensou estar diante de sua única oportunidade de transar naquela noite. “Será que ela é gostosa igual a Maria?”, pensou consigo mesmo. Começou, então, a fazer um jogo de sedução com Ana. Cochichou no ouvido dela, dançaram juntinhos e trocaram carícias num local onde ninguém pudesse vê-los. Por fim, decidiram sair do baile antes mesmo da chegada do grande convidado da noite: o governador. O policial escoltou Ana até sua casa, onde ela deixou seu carro e depois seguiram, no carro dele, para a saída da cidade à procura de um motel. “De preferência um bem barato”, deixou escapulir o policial. Ana sugeriu que fossem a um chamado Love House e, quando o policial reclamou do preço, ela insistiu, dizendo que ele não precisaria se preocupar com isso, pois eles rachariam a conta. A moça disse que queria fazer amor com ele nesse motel porque o local significava muito para ela, uma vez que havia sido ali que ela perdeu a virgindade. O policial aceitou com certa relutância.

Quando chegaram ao quarto escuro, o policial começou a tirar a roupa e a beijar Ana da única forma que sabia tratar uma mulher: violentamente. Eis que Ana acendeu a luz e o policial percebeu que eles não estavam a sós. Havia três homens no quarto. Eles seguram o policial e tapam-lhe a boca antes mesmo que ele pudesse pensar em dizer algo. Deram alguns socos nele. Foi então que Ana começou a explicar que Maria era sua irmã gêmea e que ela estava viajando pelo mundo quando do assassinato da irmã. Quando regressou, fez tudo o que pôde para encontrar a irmã desaparecida. A busca resultou infrutífera no primeiro ano, até que ela encontrou um ex-policial que disse ter sido expulso injustamente da corporação e estava disposto a lhe contar tudo o que havia acontecido com sua irmã em troca de uma certa quantia de dinheiro. Quando terminou de falar, Ana destampou a boca do policial e lhe disse: “Quais são suas últimas palavras?”. “Tenha clemência”, disse o policial. “Igual o senhor teve com a minha irmã?”, indagou a jovem. Após dizer isso, Ana entregou uma lista a um dos três homens e se retirou. Eram as instruções de tudo que ela queria que o torturador sofresse. As mesmas coisas que sua irmã sofreu.

O algoz se tornou vítima de toda a dor que infligiu a apenas uma de suas várias vítimas. Levou choque nas partes íntimas, foi violado com uma barra de metal e afogado na banheira coberta de pétalas do motel. Quando os matadores de aluguel estavam prestes a lhe cortar o pescoço com uma lâmina de barbear, sua visão ficou embaçada, como se estivesse despertando de um sonho. De repente, percebeu que era isso mesmo que estava acontecendo. Tudo não passava de um sonho! O policial estava seguro em sua cama, num asilo, no ano de 2013. Mas isso não o deixou mais tranquilo. Pelo contrário, ele começou a gritar desesperadamente: “Socorro! Os comunistas estão me matando!”. Pela segunda vez naquela semana, a enfermeira de plantão teve que tranquilizá-lo no meio da noite, explicando-lhe que ele não corre esse risco, uma vez que os comunistas não governam o país. O ex-policial agradeceu à enfermeira, que desconhece por completo a carreira tenebrosa que motiva as perturbações noturnas daquele senhor simpático.

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