segunda-feira, 26 de outubro de 2015

ENEM: Não é doutrinação, é respeito

No último domingo, mais de 7 milhões de estudantes brasileiros que aspiram entrar numa faculdade se depararam com o seguinte tema de redação no ENEM, o Exame Nacional do Ensino Médio: “A persistência da violência contra a mulher na sociedade brasileira”. Seria um tema normal no SAT, o exame utilizado pela maioria das universidades americanas para selecionar seus alunos. No entanto, tudo no Brasil tornou-se politizado ao extremo desde aquela fatícia campanha eleitoral de 2014. Até o que não deveria ser, como o respeito às diferenças individuais de cada ser humano.

Se a política for mulher, vai ser xingada por sua vida sexual.
Embora a campanha do PSDB em 2010 tenha sido muito rasteira, com acusações de que Dilma seria ateia e a favor do aborto (sendo acusada por quem de fato fez aborto), a campanha de 2014 atingiu novos patamares de baixeza. A vida sexual da presidente começou a ser abertamente questionada e, de repente, tornou-se aceitável criticar a presidenta por ela ser “puta”, “vadia”, “vagabunda”, entre outros impropérios, embora Lula e Fernando Henrique Cardoso (que traiu sua esposa com uma jornalista da Rede Globo) jamais tenham sido tratados nesses termos. O PSDB, que tem eleitoras e candidatas, deveria se posicionar contra tais ataques, mas manteve e mantém um silêncio abismal.

Quando a crise econômica piorou, em 2015, as críticas desceram ainda mais de nível. Logo os eleitores do PSDB estavam vendendo um adesivo onde a presidenta aparecia de pernas abertas para ser colocado no bocal de gasolina dos carros. Cada vez que o frentista enfiasse a mangueira no bocal, era como se estivesse violando a presidenta. Banalizaram o crime hediondo do estupro para atacar uma política que não gostam. Quando contei isso a uma inglesa que participou do Encontro Nacional da Juventude Anglicana, em setembro, ela ruborizou. Indaguei-a se Margaret Thatcher tinha sido vítima desse tipo de machismo quando foi primeira-ministra e ela me disse que as críticas se limitavam à política econômica da "dama de ferro".

Merkel e Thatcher, políticas de direita. No Brasil, ainda sonhamos
com o dia em que o PSDB lançará uma candidata à presidência.

Nos Estados Unidos, existe inclusive um movimento de feministas de direita. A mais famosa representante desse movimento talvez seja a ex-governadora do Alasca Sarah Palin, que concorreu à vice-presidência na chapa republicana encabeçada pelo senador John McCain. De maneira semelhante, a já citada Thatcher (que era a favor do aborto) e a premiê alemã Angela Merkel foram eleitas por partidos conservadores. Até mesmo no nosso vizinho Peru há uma Keiko Fujimori. Aqui no Brasil, no entanto, falta aos partidos de direita reconhecerem as mulheres como seres portadores dos mesmos direitos e deveres dos homens.

No final das contas, o feminismo se resume a isso. “Feminista é a pessoa que acredita na igualdade sociopolítico-econômica dos sexos”, diz a ativista Chimamanda Ngozi Adichie na apresentação do TED que foi mais tarde sampleada numa conhecida música da cantora norte-americana Beyoncé. Reparem que ela não distingue gêneros (“é a pessoa”), sendo que sua visão do feminismo defende que homens também podem ser feministas. Onde está a tentativa de segregar homens e mulheres nessa definição de feminismo? Onde está o marxismo? Feminismo trata-se muito mais de uma questão de respeitar o outro ser humano por sua condição de mulher do que de doutrinação marxista.

Pode parecer complexo, mas feminismo é só isso.

Inclusive existem marxistas machistas. Conheço vários, mas para não causar mal-estar com ninguém, vou citar um exemplo histórico. Ao final da Segunda Guerra Mundial, os comunistas, que estavam na linha de frente da Resistência em diversos países como França e Itália, promoveram espancamentos de mulheres que dormiram com soldados alemães. Inclusive descobri recentemente que a cantora Frida, da famosa banda sueca ABBA, na verdade é filha de uma mãe finlandesa e um pai alemão, soldado do Exército nazista, e que sua família se mudou para a Suécia no final da Guerra temendo represálias. Determinar com quem uma mulher pode ou não dormir não me soa como feminismo.

Frida, vítima do machismo. Na Guerra, quase todo finlandês
colaborou com os nazistas. Depois, incentivados pela esquerda,
lincharam mulheres que dormiram com soldados alemães.
O que os organizadores do ENEM tentaram fazer foi com que milhões de estudantes, de todas as cores, idades, classes sociais e condições econômicos, refletissem sobre situações que acometem milhões de mulheres – inclusive as próprias estudantes – todos os dias no Brasil; desde a empregada doméstica que é assediada por seu patrão até a presidenta da República, xingada de “puta” desde que a economia azedou. Quiseram saber de um público majoritariamente jovem, o porquê da violência contra a mulher ainda ser tolerável no Brasil em pleno século XXI. Com isso, o Exame sinalizou à sociedade que precisamos falar sobre o tema nas escolas. 

É uma tentativa de estimular o debate diante da investida machista que interdita-o. No início deste ano, sob pressão (e com o apoio) da Igreja Católica e de denominações evangélicas, vereadores de diversas cidades conseguiram retirar dos Planos Municipais de Educação metas que indicavam a necessidade de trabalhar na sala de aula os temas de gênero e sexualidade. As mesmas já haviam sido retiradas do Plano Nacional de Educação no ano passado sob a influência da Bancada Evangélica do Congresso Nacional. Foi isso, inclusive, que motivou minha saída da Igreja Católica após 25 anos como fiel daquela denominação.

O tema da redação do ENEM não tem nada de ideológico, baseia-se na realidade de nosso país, em casos de bullying machista nas escolas e no estupro de universitárias. Baseia-se na constatação de que um ambiente que deveria inspirar a sociedade a pensar e superar seus problemas perpetua a violência contra a mulher devido à crença – sem embasamento – de que as mulheres são inferiores aos homens. Mas no Brasil atual, onde a defesa da ampliação de todo e qualquer direito é logo denunciada como parte integrante de uma trama comunista do PT para desestabilizar a sociedade, pensar tornou-se praticamente um delito, o crimideia de Orwell.

Alguém avisa à patrulha anticomunista que a URSS acabou?
Também argumentavam isso no Sul dos Estados Unidos quando milhares de negros (e brancos simpatizantes, geralmente nortistas) se insurgiram contra o sistema de segregação racial. Os defensores do status quo racista chegavam ao ridículo de acusar o FBI, responsável pela investigação de crimes racistas e chefiado pelo notório anticomunista J. Edgard Hoover, de comunista. Meu sonho é que um dia o Brasil saia da paranoia anticomunista dos anos 1950-60 que nega direitos e institucionaliza a violência. Até porque no próximo dia 26 de dezembro comemora-se o 24° aniversário do fim da União Soviética e, consequentemente, da ordem mundial bipolar.

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